sexta-feira, 29 de julho de 2016

Paulista rima com...

"Non ducor, duco", expressão da prepotência e arrogância da elite branca paulista
Já sabia ler e escrever quando fui para a escola, no início de 1972. Também sabia contar, somar e dividir. Mas foi lá na escola “sem partido” do Córrego Grande, bairro rural de Penápolis, que ouvi falar pela primeira vez dos bandeirantes. Fernão Dias Paes, Borba Gato, Bartolomeu Bueno...

As ilustrações dos livros e as explicações das professoras me apresentaram os bandeirantes como destemidos heróis, valentes desbravadores do sertão que, partindo de São Paulo, se embrenhavam pelas matas conquistando territórios, alargando fronteiras, construindo um futuro pujante para o Brasil.

Também foi lá na escolinha “sem partido” da roça que ouvi pela primeira vez o acrônimo MMDC, iniciais de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, jovens mártires da Revolução Constitucionalista.

A morte dos quatro estudantes, no dia 23 de março de 1932, nas proximidades do Palácio dos Campos Elíseos, na capital Paulista, foi o estopim para a revolta armada explodir no dia 9 de julho daquele mesmo ano. São Paulo, assim me ensinaram as professoras, ergueu-se contra o resto do país na luta para restabelecer a liberdade e a legalidade, através de uma Constituinte.

Foi assim, naquela escolinha rural “desideologizada” que fui, pouco a pouco, doutrinado pelo que Luis Fernando Cerri, doutor em Educação pela Unicamp, chama de ideologia da paulistanidade. Ideologia que começou a ser gestada ainda no século 18 e gradativamente foi compondo o currículo escolar, de forma explícita ou oculta, inculcando nos alunos a ideia de que o povo paulista, personificado nos bandeirantes, é “construtor das amplas fronteiras do território e mantenedor da grandeza nacional”, bem como “a mistificação de que São Paulo é o Estado mais rico porque o seu povo é o que mais se dedica ao trabalho”.

Cresci acreditando nesse mito. Alimentando a imagem de São Paulo como a locomotiva da nação, forte, impávido, arrastando os demais estados, lentos e pesados, sinônimos do atraso. Não por acaso. Essa simbologia está no lema da dita Revolução Constitucionalista, “Non ducor, duco”, expressão em latim que significa “Não sou conduzido, conduzo”.

Só muito tempo depois, quando a pluralidade de concepções e conhecimentos voltou a ocupar o ambiente escolar, já com a ditadura militar agonizando, fui descobrir que os bandeirantes nada tinham de heróis. Não passavam de mercenários. Usavam de violência extremada, saqueavam aldeias, praticavam estupros, capturavam e escravizavam indígenas e caçavam pedras preciosas.

Nessa escola que se fazia plural e reflexiva, também comecei a entender que a chamada Revolução de 32 nada tinha de revolucionário. Pelo contrário, era um movimento conservador das elites paulistas, uma tentativa de recuperar o poder tomado por Getúlio Vargas em 1930. Claramente elitista e separatista, o movimento contou com o engajamento da mídia da época, o Estadão à frente, para aliciar e insuflar as camadas populares contra o governo central.

Até 1930, os barões do café, junto com os fazendeiros produtores de leite mineiros, controlavam a economia e a política do país. Paulistas e mineiros ocupavam alternadamente a presidência da República para garantir os interesses da aristocracia café-com-leite. Em 1929, o paulista Washington Luís, deu uma rasteira nos mineiros indicando o também paulista Júlio Prestes para sucedê-lo na presidência. Um golpe! De elite contra elite, mas um golpe.

Júlio Prestes ganhou mas não levou. Nem posse tomou. Mineiros, gaúchos e paraibanos, apontando fraude nas eleições, se rebelaram e, com apoio do Exército, conduziram Vargas ao governo. Um dos vários golpes militares de nossa história republicana.

Além da perda do domínio político, a elite branca paulista passa a assistir, então, à estruturação de uma legislação trabalhista pelo governo Vargas. E começou a tramar um movimento armado para derrubar o que chamava de ditadura. Uma tentativa de golpe contra o golpe militar que barrou o outro golpe. Tudo disfarçado de defesa da democracia, da legalidade e por uma nova Constituição.

Pouco se sabe dos quatro jovens mortos naquele 23 de março de 1932. Penso que não eram muito diferente da massa elitista, preconceituosa e intolerante que ocupou as ruas da capital paulista no início deste ano, uniformizados de verde e amarelo, pedindo a volta da ditadura militar, incensando o fascista Bolsonaro, exigindo o fim do governo popular da presidenta Dilma que, em continuidade aos governos do presidente Lula, promoveram inclusão e avanço nas políticas e direitos sociais sem precedentes. Tudo isso disfarçado de defesa da democracia e de combate à corrupção.

Noutras palavras, mais um golpe! Agora contra a vontade de 54,5 milhões de brasileiros, expressa nas urnas. Mais um movimento confessadamente elitista e separatista, insuflado pela mídia golpista e patrocinado pela Fiesp. Mais uma demonstração do despeito dessa elite branca que, mesmo considerando-se a locomotiva da nação e mantendo sua influencia sobre a economia e a política nacional, não conseguiu eleger um presidente paulista desde Washington Luís.

Muitas são as rimas possíveis. Para mim, entretanto, a que mais se aplica desde sempre aos paulistas é GOLPISTA. Mais atual do que nunca.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Cristofobia?

As prostitutas vos precederão no Reino de Deus”
 (Jesus Cristo, in Mt 21, 31)


Religião não se discute. Cresci ouvindo esse bordão. Até de quem se diz sem religião. Mas creio ser a religião um dos temas mais debatidos em todos os tempos. E não apenas pelos teólogos. Personalidades que inscreveram seus nomes na história da política, da filosofia, das ciências, das artes expressaram reflexões provocadoras e inquietantes sobre o assunto, em linhas às vezes convergentes, em outras paralelas, sem pontos em comum.

Talvez a frase do filósofo alemão Karl Marx, “a religião é ópio do povo”, seja a mais conhecida e usada. Embora em campo radicalmente oposto, o imperador francês Napoleão Bonaparte convergiu com Marx ao afirmar que “religião é aquilo que impede os pobres de matarem os ricos”, talvez porque, pensando como o escritor francês Stendhal, “todas as religiões são fundadas sobre o temor de muitos e a esperteza de poucos”. O matemático e filósofo inglês Thomas Hobbes até especula sobre tais temores, atribuindo-os aos “poderes invisíveis, inventados ou imaginados a partir de relatos”.

Tais posições, entretanto, não são unânimes. Para o líder pacifista indiano Mahatma Gandhi “uma vida sem religião é como um barco sem leme”. Adepto do hinduísmo, Gandhi chegou a admitir a possibilidade de tornar-se cristão “se os cristãos o fossem vinte e quatro horas por dia”.

De minha parte, penso que religião de fato não se discute. Pratica-se. Cônscio de sua limitação e finitude, o homem busca na prática religiosa, no encontro com o Absoluto, princípio e autor da vida, a possibilidade de viver eterna e plenamente. Fatos recentes, porém, me puxaram para esse debate.

Tempos atrás não consegui me conter e publiquei um comentário sobre a troca de ofensas entre um conhecido jornalista e um desses pastores midiáticos, motivada pela performance da atriz transexual Viviany Beleboni na Parada Gay da capital paulista. Mesmo considerando deselegante e inadequada a resposta do jornalista ao pastor, destaquei que não havia nada de cristão na atitude de quem, em sua pregação, incita o ódio, a violência, o preconceito e a discriminação.

Bastou tal comentário para ser acusado, ainda que de forma velada, de cristofobia. Eu, cristão, cristofóbico? É, pode ser!

Thomas Merton, monge trapista do século 20, dizia que “todo homem se torna imagem do deus que adora”. Escolhi adorar o Deus da vida revelado ao mundo em Jesus. Não um Jesus qualquer, mas aquele Jesus histórico que encarnou a vida, as dores e o sofrimento de seu povo. Que teve (com)paixão, se aproximou e caminhou com aqueles que todos evitavam, os excluídos e marginalizados pela sociedade de então: as mulheres, inclusive as prostitutas, os publicanos, os pobres, os famintos, os deficientes, os enfermos, em especial os leprosos.

Aquele Jesus que não orientou sua vida por leis, normas ou regras, mas tão somente pelo amor. Amor incondicional consubstanciado no perdão sem limites, na tolerância e respeito às diversidades de gênero, religião, raça e classe, no serviço alegre e humanizante, no doar-se integralmente ao próximo. O Jesus que, assim vivendo, questionou de forma contundente os fundamentos de um sistema social opressor, violento, excludente e atentatório contra a vida.

O Jesus Cristo que, por assim viver, não morreu velhinho nem doente sobre uma cama, mas ainda jovem foi barbaramente torturado e assassinado, que sangrou até a exaustão numa cruz, condenado pelos donos do poder com apoio de uma turba insana. Aliás, uma turba muito parecida com certos cristãos que hoje clamam pela pena de morte e a redução da maioridade penal, que se regozijam com a desgraça alheia e que disseminam ódio e intolerância.

Certamente o cristo dessa turba é outro, pintado conforme os interesses e as conveniências de cada igrejola ou cada “fiel”. A esse pseudo cristianismo, de fato, tenho aversão.

(Publicado originalmente no Varal de Notícias em 08/07/2015)

sexta-feira, 1 de julho de 2016

São de Assis e perfeito de Assis!

São de Assis e perfeito de Assis
A maioria das pessoas o achava chato, impertinente, ranzinza, mal humorado. Até eu tive essa falsa impressão antes de conhecê-lo melhor. Junto com o Xavier e o Marcos Belussi, passamos a ajudá-lo na Secretaria do Santuário todas as manhãs de domingo, preenchendo as lembrancinhas de batizado. 

E foi assim que frei Rafael passou a ter uma predileção especial por nós e revelou-se uma pessoal extremamente dócil e amável. Mas nem por isso deixava de ser sincero. Nunca teve meias palavras, sempre dizia o que pensava com todas as letras, de forma direta, honesta e objetiva. 

Essas poucas horas matinais que passávamos juntos nos domingos eram de grande aprendizado, por isso senti muito quando foi transferido de Penápolis. 

Voltei a encontrá-lo em Piracicaba em 1996. Fomos, eu e a Marilda, visitar o amigo frei Carlos no Seminário São Fidélis e ele nos levou até o Convento Sagrado Coração de Jesus. Cruzamos com frei Rafael nos corredores. Foi muito afetuoso. 

Quando Carlos lhe contou que a Marilda estava grávida, estampou um largo sorriso, tocou em sua barriga e perguntou: é menino ou menina? Como a Marilda respondeu que ainda não sabíamos o sexo, ele completou: “Não importa, que venha “são” de Assis e “perfeito” de Assis. Foi a última vez que o vimos antes de sua morte ocorrida em setembro de 1997. 

No ônibus, voltando para casa, estava absorto, pensando nas palavras do frei, quando a Marilda interrompeu meus pensamentos. “Alguma vez você pensou em colocar o nome de Francisco no nosso bebê”? 

Incrível! Era exatamente isso que estava pensando. A conversa com frei Rafael produzira em mim e na Marilda a mesma reação. E naquele momento tomamos a decisão: se for menino será Francisco de Assis, se for menina daremos o nome de Clara de Assis. Com a fé e a certeza de que, menino ou menina, viria são e perfeito. 

Fé e certeza confirmadas no dia 15 de agosto de 1996, com o nascimento de um garoto saudável, tranquilo, perfeito: Francisco de Assis. Realização de um sonho, quase uma utopia. Foram nove longos anos de espera, sofrimento, frustrações, desesperanças e até incredulidade. Mas, contra tudo isso, os planos de Deus falaram mais alto e o Francisco veio dar um sentido novo, um novo sabor à nossa vida. 

No seu Batismo, frei Carlos lembrou a “profecia” do frei Rafael, meses antes, dando graças a Deus pela saúde e a perfeição do Francisco. E nos revelou: Rafael significa Deus Cura!

(Publicado originalmente no Facebook em 04/11/12)