Viajar pelo Brasil, conhecer suas belezas e segredos, beber da sabedoria popular, desvendar os mistérios presentes nos recônditos de cada cidade ou vilarejo, mergulhar na história viva dos relatos, monumentos e sítios históricos... Foi um sonho que acalentei por muitos anos na minha vida, quase uma utopia.
Foi só recentemente, nos governos de Lula e Dilma, que comecei a realizá-lo. Mais do que uma mera coincidência, acredito e credito o sonho concretizado às oportunidades criadas. Nas muitas viagens, experiências riquíssimas, aprendizados inesquecíveis, emoções inestimáveis.
Um chapéu, uma bengala, um óculos e uma simples caricatura traçada pelo saudoso Henfil marejaram meus olhos quando adentrei, anos atrás, o Memorial Tetônio Vilela, em Maceió, projeto que eterniza a vida do menestrel das Alagoas, assim batizado na composição de Milton Nascimento e Fernando Brandt.
Revivi ali, em poucos minutos, a luta pelas Diretas Já e a trajetória daquele usineiro, adesista de primeira hora da ditadura implantada pelo golpe militar de 64, que gradualmente foi radicalizando na luta pelas liberdades políticas e pela redemocratização do país, na mesma medida em que um câncer lhe consumia as forças e a vida. Emoção indizível!
Nada comparado, entretanto, à experiência vivida no último domingo, 4 de setembro, quando visitei Olinda. Já tinha em mente o roteiro com os pontos turísticos que desejava conhecer, mas me permiti ser conduzido pelo Renato, o guia turístico que nos abordou no semáforo, na sugestiva esquina da Rua do Sol com Avenida Liberdade.
Renato levou-nos direto ao Alto da Sé e apressou-nos: “é melhor conhecer a catedral agora, porque depois fecha”. Entramos. Renato, caminhando célere à nossa frente, conta resumidamente a história do templo, suas características arquitetônicas descaracterizadas ao longo do tempo e retomadas na última reforma.
Ele continua falando, mas sua voz fica inaudível para mim quando pouso os olhos num dos sepulcros localizados numa capela lateral. O coração dispara, sobe um nó à garganta, um peso se abate sobre o peito, suspiro profundamente e só a muito custo consigo conter as lágrimas que vertem copiosamente. Estou à frente dos restos mortais de Dom Hélder Câmara.
Permaneço longos segundos nesse êxtase. Sinto a presença de Dom Helder, chamado de arcebispo vermelho pela ditadura militar. Vejo-o denunciando profeticamente a tortura praticada nos porões do regime ditatorial, defendendo ardorosamente os direitos humanos, vivendo a radicalidade do Evangelho, sofrendo censuras e ameaças à vida.
Ouço os estampidos das metralhadoras disparando contra sua residência na Igreja das Fronteiras, no Recife. Sinto a sua dor com o assassinato do padre Antonio Henrique, seu colaborador na Arquidiocese de Olinda e Recife, cujo corpo trucidado pelas forças da repressão hoje repousa em sepultura ao lado da sua.
Suas palavras martelam vivas em minha mente: “o verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”. Sua generosidade persiste como exemplo: “as pessoas são pesadas demais para serem levadas nos ombros. Levo-as no coração”.
Seus ensinamentos, sempre atuais, indicam um propósito de vida: “há criaturas como a cana: mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura”.
Sua indignação é também a nossa indignação diante da seletiva e hipócrita moralidade burguesa: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. A única diferença é que hoje nos chamam de petralhas.
Pergunto a Renato se conheceu Dom Hélder, ele diz que não, que tinha só dez anos quando o bispo faleceu, mas afiança que todos que o conheceram atestam sua santidade e esperam pela sua canonização. "Só falta um milagre para ele virar santo", acrescenta.
Ainda absorto nas lembranças e pensamentos apenas constato: “Dom Hélder nos faz muita falta nesses tempos difíceis de golpe à democracia!”
Seguimos a caminhada dentro da Sé, paro para contemplar o altar riquissimamente adornado por detalhes em ouro, contrastando com a vida despojada de dom Hélder. Renato aponta o chão à minha frente e informa: “aí foi a primeira sepultura do bispo”. Soa como a admoestação de Javé a Moisés, no livro do Êxodo: “tira as sandálias dos pés, porque este chão em que pisas é santo”.
Saio da Sé com o coração esfuziante, repleto de alegria, revigorado, fortalecido, compreendendo como dom Hélder que “é graça divina começar bem. Graça maior persistir na caminhada certa. Mas graça das graças é não desistir nunca”. Especialmente quando a caminhada é pela liberdade e pela libertação de tudo que oprime, escraviza, subjuga e aniquila o povo de Deus.
Quem sabe não seja esse o milagre que faltava, Renato!
sexta-feira, 9 de setembro de 2016
quinta-feira, 1 de setembro de 2016
Jarbas ou Anselmo?
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Jarbas Pereira Marques |
Foi ali que iniciou sua militância no movimento estudantil secundarista, na segunda metade da década de 60. Anos sombrios da ditadura militar implantada em 64, que acabou com as eleições diretas, suprimiu direitos políticos e constitucionais, impôs a censura, a perseguição política e a violenta repressão aos que se opunham ao regime.
A 10 dias de completar 20 anos de idade, Jarbas foi preso quando distribuía panfletos convocando para o congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Foi considerado subversivo e torturado pelos órgãos de repressão de Pernambuco. Saiu doente da prisão. Mas também saiu fortalecido nas convicções e no propósito de combater a ditadura, lutar pela democracia.
Na militância conheceu Tércia Maria Rodrigues, por quem apaixonou-se e com quem casou-se em 17 de dezembro de 1970. Moraram inicialmente em São Paulo mas regressaram ao Recife cerca de um ano depois, com a missão de organizar no Nordeste a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Foi na Livraria Moderna, centro do Recife, onde estava trabalhando, que Jarbas caiu novamente nas garras da repressão, no dia 08 de janeiro de 1973. Três dias antes, havia procurado a advogada Mércia de Albuquerque Ferreira, a quem relatou a suspeita de ter sido delatado por um agente da repressão infiltrado na VPR. Confiou a ela algumas fotos, documentos e revelou a angústia e a amargura da prisão iminente.
Em depoimento à Justiça, Mércia descreve Jarbas como "um tipo romântico e ingênuo" e diz que o aconselhou a fugir. Ele, porém, arriscou e entregou a própria vida para garantir a segurança da frágil esposa e da filhinha Nadejda, de apenas 9 meses. Por amor, entregou-se ao martírio para preservar filha e esposa às quais permaneceu fiel até o fim.
Preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, Jarbas foi trucidado em sessões de tortura. Três dias depois os jornais noticiaram sua morte e de mais cinco militantes da VPR na Granja São Bento, na cidade pernambucana de Paulista, todos presos e torturados até a morte e levados à chácara para forjar o cenário de um falso tiroteio com as forças policiais.
Amor, solidariedade, compaixão, fidelidade, definem Jarbas.
Soledad Barret Viedma, uma das cinco militantes assassinadas
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Soledad Barret Viedma |
Paraguaia de nascimento, Sol viveu exilada na Argentina e no Uruguai devido ao ativismo político de sua família. Aos 17 anos, em Montevidéu, foi sequestrada por neonazistas que gravaram a suástica em suas coxas, com uma navalha, por se negar a gritar "Viva Hitler".
Fugindo das perseguições, refugiou-se em Cuba, onde conheceu o brasileiro José Maria Ferreira de Araújo, militante da VPR que estava exilado na Ilha, com quem se casou teve uma filha.
José Maria, o Arariboia retornou ao Brasil e foi capturado e morto em 1970. Sua morte fortaleceu em Soledad a disposição de lutar contra as sangrentas ditaduras militares nos países latino-americanos.
Passou a militar na VPR, onde conheceu José Anselmo dos Santos, amigo e companheiro de José Maria. Ex-sargento da Marinha, "cabo" Anselmo tinha liderado a revolta dos marinheiros, no Rio de Janeiro, em março de 64, dias antes do golpe militar. Foi preso pela ditadura, fugiu e exilou-se em Cuba. Na volta ao Brasil passou a integrar a VPR.
Quando Sol foi presa, torturada e executada pelo delegado Fleury, em janeiro de 1973, estava grávida de cabo Anselmo. Quando foi ao necrotério do Recife, em frente ao Cemitério de Santo Amaro, à procura do corpo de Jarbas, a advogada Mércia encontrou seis corpos. Ela conta que "em um barril estava Soledad Barrett Viedma: ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas e, no fundo do barril se encontrava também um feto".
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Cabo Anselmo |
Cabo Anselmo, ao contrário de Jarbas, não protegeu Soledad. Sem remorso e sem dor ele a delatou e a entregou grávida ao delegado Fleury para ser executada, como fez com os outros cinco massacrados na Granja São Bento e com dezenas, talvez centenas, de companheiros entregues à tortura e à morte. Cabo Anselmo, na verdade, era agente policial infiltrado.
No livro Soledad no Recife, o escritor pernambucano Urariano Mota conta que Sol, antes de morrer apontou para o traidor e sentenciou: "Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século".
Canalhice, covardia, torpeza, vilania, traição, definem cabo Anselmo. E cinismo! Assassino cruel de sua amorosa companheira e de seu filho, cabo Anselmo disse que o fez para salvar o Brasil do comunismo.
Na vida, sempre somos instados a tomar posição, a escolher entre Jarbas e cabo Anselmo. A maioria de nós escolhe Jarbas, ainda que isso represente a derrota e até a morte. Mas há quem se identifique com Anselmo. Escolhem Caim no lugar de Abel, Silvério no lugar de Tiradentes, Judas no lugar de Jesus.
Vi isso ainda ontem em vídeo publicizado por uma controversa coadjuvante da política local, no qual, cinicamente, justifica sua escolha por Temer no lugar de Dilma. Por amor ao Brasil, diz ela.
Infelizmente, no Brasil que ela diz amar não cabem os brasileiros.
Obrigado, querida!
"A gratidão é a virtude das almas nobres".
Do primeiro ao último dia de seus dois mandatos, em cada gesto seu, cada iniciativa, cada projeto, cada ação, você dignificou o voto que lhe confiei nas duas eleições presidenciais.
Há quem diga que não fez mais do que obrigação. Há até quem se beneficiou dos programas sociais implementados e/ou fortalecidos em seus governos, como o Minha Casa Minha Vida, o Bolsa Família, o Mais Médicos, o ProUni e o Pronatec, e, ainda assim, está vibrando com o golpe que lhe usurpou a Presidência.
Particularmente, não sou e nunca fui beneficiário de nenhum dos programas sociais do governo federal. Sequer sou usuário direto do SUS, exceto daquelas ações ligadas à Vigilância Sanitária.
Mas hoje, quando a traição e os mesquinhos interesses das nossas elites consumam o golpe contra seu mandato e contra a democracia, preciso lhe dizer: MUITO OBRIGADO!
Obrigado por colocar o combate à miséria e a fome dentre as prioridades de seu governo.
Obrigado por defender direitos e programas que garantiram a inclusão de milhões de brasileiros.
Obrigado pela expansão das universidades e institutos federais, o ProUni, o FIES e a política de cotas que garantiram o acesso ao ensino superior a milhares de filhos de trabalhadores, inclusive a dois dos meus filhos, Francisco e Pedro.
Obrigado pelas políticas afirmativas e emancipatórias implementadas em favor da população afrodescendente, das mulheres, dos indígenas, da juventude.
Obrigado por não transigir com a corrupção nem ceder às chantagens.
Obrigado por defender, com altivez, garra e serenidade, até o último segundo, a democracia expressa no voto de 54 milhões de brasileiros e brasileiras.
Obrigado por não sucumbir à violência golpista e infundir em nossos corações a esperança e apontar o caminho da luta para enfrentar a escalada fascista, golpista e retrógrada que se abate sobre o país.
Obrigado, obrigado, obrigado...
(Publicado originalmente no Facebook em 31/08/2016)
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