sexta-feira, 9 de setembro de 2016

São Helder Câmara

Viajar pelo Brasil, conhecer suas belezas e segredos, beber da sabedoria popular, desvendar os mistérios presentes nos recônditos de cada cidade ou vilarejo, mergulhar na história viva dos relatos, monumentos e sítios históricos... Foi um sonho que acalentei por muitos anos na minha vida, quase uma utopia. 

Foi só recentemente, nos governos de Lula e Dilma, que comecei a realizá-lo. Mais do que uma mera coincidência, acredito e credito o sonho concretizado às oportunidades criadas. Nas muitas viagens, experiências riquíssimas, aprendizados inesquecíveis, emoções inestimáveis. 

Um chapéu, uma bengala, um óculos e uma simples caricatura traçada pelo saudoso Henfil marejaram meus olhos quando adentrei, anos atrás, o Memorial Tetônio Vilela, em Maceió, projeto que eterniza a vida do menestrel das Alagoas, assim batizado na composição de Milton Nascimento e Fernando Brandt. 


Revivi ali, em poucos minutos, a luta pelas Diretas Já e a trajetória daquele usineiro, adesista de primeira hora da ditadura implantada pelo golpe militar de 64, que gradualmente foi radicalizando na luta pelas liberdades políticas e pela redemocratização do país, na mesma medida em que um câncer lhe consumia as forças e a vida. Emoção indizível!


Nada comparado, entretanto, à experiência vivida no último domingo, 4 de setembro, quando visitei Olinda. Já tinha em mente o roteiro com os pontos turísticos que desejava conhecer, mas me permiti ser conduzido pelo Renato, o guia turístico que nos abordou no semáforo, na sugestiva esquina da Rua do Sol com Avenida Liberdade.


Renato levou-nos direto ao Alto da Sé e apressou-nos: “é melhor conhecer a catedral agora, porque depois fecha”. Entramos. Renato, caminhando célere à nossa frente, conta resumidamente a história do templo, suas características arquitetônicas descara
cterizadas ao longo do tempo e retomadas na última reforma.

Ele continua falando, mas sua voz fica inaudível para mim quando pouso os olhos num dos sepulcros localizados numa capela lateral. O coração dispara, sobe um nó à garganta, um peso se abate sobre o peito, suspiro profundamente e só a muito custo consigo conter as lágrimas que vertem copiosamente. Estou à frente dos restos mortais de Dom Hélder Câmara.

Permaneço longos segundos nesse êxtase. Sinto a presença de Dom Helder, chamado de arcebispo vermelho pela ditadura militar. Vejo-o denunciando profeticamente a tortura praticada nos porões do regime ditatorial, defendendo ardorosamente os direitos humanos, vivendo a radicalidade do Evangelho, sofrendo censuras e ameaças à vida.


Ouço os estampidos das metralhadoras disparando contra sua residência na Igreja das Fronteiras, no Recife. Sinto a sua dor com o assassinato do padre Antonio Henrique, seu colaborador na Arquidiocese de Olinda e Recife, cujo corpo trucidado pelas forças da repressão hoje repousa em sepultura ao lado da sua.


Suas palavras martelam vivas em minha mente: “o verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”. Sua generosidade persiste como exemplo: “as pessoas são pesadas demais para serem levadas nos ombros. Levo-as no coração”. 


Seus ensinamentos, sempre atuais, indicam um propósito de vida: “há criaturas como a cana: mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura”.
Sua indignação é também a nossa indignação diante da seletiva e hipócrita moralidade burguesa: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. A única diferença é que hoje nos chamam de petralhas.


Pergunto a Renato se conheceu Dom Hélder, ele diz que não, que tinha só dez anos quando o bispo faleceu, mas afiança que todos que o conheceram atestam sua santidade e esperam pela sua canonização. "Só falta um milagre para ele virar santo", acrescenta.
Ainda absorto nas lembranças e pensamentos apenas constato: “Dom Hélder nos faz muita falta nesses tempos difíceis de golpe à democracia!”


Seguimos a caminhada dentro da Sé, paro para contemplar o altar riquissimamente adornado por detalhes em ouro, contrastando com a vida despojada de dom Hélder. Renato aponta o chão à minha frente e informa: “aí foi a primeira sepultura do bispo”. Soa como a admoestação de Javé a Moisés, no livro do Êxodo: “tira as sandálias dos pés, porque este chão em que pisas é santo”.


Saio da Sé com o coração esfuziante, repleto de alegria, revigorado, fortalecido, compreendendo como dom Hélder que “é graça divina começar bem. Graça maior persistir na caminhada certa. Mas graça das graças é não desistir nunca”. Especialmente quando a caminhada é pela liberdade e pela libertação de tudo que oprime, escraviza, subjuga e aniquila o povo de Deus.


Quem sabe não seja esse o milagre que faltava, Renato!

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