quinta-feira, 17 de agosto de 2017

E a primavera, quando vai chegar?

O inverno está chegando!

Essa frase, que soa em tom de alerta, é recorrente nos livros que compõem As crônicas de Gelo e Fogo, de autoria do romancista estadunidense George R. R. Martin, e que inspiraram a série Game of Thrones.

Nos Sete Reinos de Westeros, o mundo medieval fictício criado por Martin, as estações não começam e terminam sempre na mesma data, como ocorre na Terra. Os verões e os invernos têm durações imprevisíveis, podendo se prolongar por até uma década.

Na trama, afetados por guerras e rebeliões durante o extenso verão, os Sete Reinos não estão devidamente preparados para as agruras do inverno que se aproxima e é reiteradamente anunciado pelo lema da casa Stark, os suseranos de Winterfell: o inverno está chegando.

Enfrentar um inverno rigoroso e prolongado é passar por uma prova de fogo. Ou melhor, de gelo. As plantações morrem, os alimentos escasseiam, a fome e o frio ceifam vidas. Numa entrevista recente, o autor d'As Crônicas de Gelo e Fogo chegou a afirmar que o inverno "é a época onde as coisas morrem, e o gelo, frio e escuridão dominam o mundo".

Nosso inverno não é assim tão rigoroso. Por aqui a temperatura cai um pouco em alguns poucos dias do ano, ressecando nossa pele, estimulando o apetite, trazendo sonolência, aumentando a diurese, provocando dores musculares... Quando o frio nos pega desprevenidos, os pelos ficam arrepiados, a tremedeira se instala, batemos o queixo e rangemos os dentes. Nada, porém, que não se resolva com um bom agasalho, uma manta ou um cobertor.

Dizem que o inverno também afeta nosso humor, nos deixa tristes. Não me sinto tão afetado nesse aspecto. Pelo menos não percebo. Só fico irritado por ser obrigado a levantar e sair para o trabalho com o "dia" ainda escuro, a lua alta, as estrelas cintilando no céu. Mas até isso passa quando o sol nascente tinge as nuvens de carmesim.

Se para muitos a paisagem invernal é melancólica, para mim tem seus encantos, com o céu tingido de cinza e as árvores nuas, as folhas secas esvoaçando pelo chão. Não fosse o frio intenso até me arriscaria a esperar pela neve nas serras gaúcha e catarinense.

Esse inverno não me preocupa. O que me inquieta, me enfurece até, é outro inverno. É aquele que se abateu sobre nosso país, trazendo uma longa e escura noite. Embora de outra natureza, esse inverno também mexeu com nosso humor, disseminou ódio e instaurou o reinado da tristeza, da insegurança e do medo. Também trouxe fome e frio. E está ceifando vidas. A primeira vítima fatal, como bem sabemos, foi a democracia.

Esse inverno indesejado já durou bastante e só tem piorado a cada dia, trazendo nuvens tenebrosas sobre o céu costumeiramente anil do Brasil. E temo que se prolongue além do que nossa fragilidade humana possa suportar. Temo que se torne um inverno tão surreal quanto o de Westeros e se estenda por décadas sem fim. Temo que a noite escura se alongue muito e congele os corações e as consciências.

Por isso, anseio pela chegada da primavera com o sol quente e radiante, com a diversidade de cores e flores. Por ora, vou alimentando a esperança, da qual fala Victor Hugo, romancista francês do século 19: "o inverno cobre minha cabeça, mas uma eterna primavera vive em meu coração". E confiando na profecia atribuída a Che Guevara: "podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera".

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

São Helder Câmara

Viajar pelo Brasil, conhecer suas belezas e segredos, beber da sabedoria popular, desvendar os mistérios presentes nos recônditos de cada cidade ou vilarejo, mergulhar na história viva dos relatos, monumentos e sítios históricos... Foi um sonho que acalentei por muitos anos na minha vida, quase uma utopia. 

Foi só recentemente, nos governos de Lula e Dilma, que comecei a realizá-lo. Mais do que uma mera coincidência, acredito e credito o sonho concretizado às oportunidades criadas. Nas muitas viagens, experiências riquíssimas, aprendizados inesquecíveis, emoções inestimáveis. 

Um chapéu, uma bengala, um óculos e uma simples caricatura traçada pelo saudoso Henfil marejaram meus olhos quando adentrei, anos atrás, o Memorial Tetônio Vilela, em Maceió, projeto que eterniza a vida do menestrel das Alagoas, assim batizado na composição de Milton Nascimento e Fernando Brandt. 


Revivi ali, em poucos minutos, a luta pelas Diretas Já e a trajetória daquele usineiro, adesista de primeira hora da ditadura implantada pelo golpe militar de 64, que gradualmente foi radicalizando na luta pelas liberdades políticas e pela redemocratização do país, na mesma medida em que um câncer lhe consumia as forças e a vida. Emoção indizível!


Nada comparado, entretanto, à experiência vivida no último domingo, 4 de setembro, quando visitei Olinda. Já tinha em mente o roteiro com os pontos turísticos que desejava conhecer, mas me permiti ser conduzido pelo Renato, o guia turístico que nos abordou no semáforo, na sugestiva esquina da Rua do Sol com Avenida Liberdade.


Renato levou-nos direto ao Alto da Sé e apressou-nos: “é melhor conhecer a catedral agora, porque depois fecha”. Entramos. Renato, caminhando célere à nossa frente, conta resumidamente a história do templo, suas características arquitetônicas descara
cterizadas ao longo do tempo e retomadas na última reforma.

Ele continua falando, mas sua voz fica inaudível para mim quando pouso os olhos num dos sepulcros localizados numa capela lateral. O coração dispara, sobe um nó à garganta, um peso se abate sobre o peito, suspiro profundamente e só a muito custo consigo conter as lágrimas que vertem copiosamente. Estou à frente dos restos mortais de Dom Hélder Câmara.

Permaneço longos segundos nesse êxtase. Sinto a presença de Dom Helder, chamado de arcebispo vermelho pela ditadura militar. Vejo-o denunciando profeticamente a tortura praticada nos porões do regime ditatorial, defendendo ardorosamente os direitos humanos, vivendo a radicalidade do Evangelho, sofrendo censuras e ameaças à vida.


Ouço os estampidos das metralhadoras disparando contra sua residência na Igreja das Fronteiras, no Recife. Sinto a sua dor com o assassinato do padre Antonio Henrique, seu colaborador na Arquidiocese de Olinda e Recife, cujo corpo trucidado pelas forças da repressão hoje repousa em sepultura ao lado da sua.


Suas palavras martelam vivas em minha mente: “o verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”. Sua generosidade persiste como exemplo: “as pessoas são pesadas demais para serem levadas nos ombros. Levo-as no coração”. 


Seus ensinamentos, sempre atuais, indicam um propósito de vida: “há criaturas como a cana: mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura”.
Sua indignação é também a nossa indignação diante da seletiva e hipócrita moralidade burguesa: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. A única diferença é que hoje nos chamam de petralhas.


Pergunto a Renato se conheceu Dom Hélder, ele diz que não, que tinha só dez anos quando o bispo faleceu, mas afiança que todos que o conheceram atestam sua santidade e esperam pela sua canonização. "Só falta um milagre para ele virar santo", acrescenta.
Ainda absorto nas lembranças e pensamentos apenas constato: “Dom Hélder nos faz muita falta nesses tempos difíceis de golpe à democracia!”


Seguimos a caminhada dentro da Sé, paro para contemplar o altar riquissimamente adornado por detalhes em ouro, contrastando com a vida despojada de dom Hélder. Renato aponta o chão à minha frente e informa: “aí foi a primeira sepultura do bispo”. Soa como a admoestação de Javé a Moisés, no livro do Êxodo: “tira as sandálias dos pés, porque este chão em que pisas é santo”.


Saio da Sé com o coração esfuziante, repleto de alegria, revigorado, fortalecido, compreendendo como dom Hélder que “é graça divina começar bem. Graça maior persistir na caminhada certa. Mas graça das graças é não desistir nunca”. Especialmente quando a caminhada é pela liberdade e pela libertação de tudo que oprime, escraviza, subjuga e aniquila o povo de Deus.


Quem sabe não seja esse o milagre que faltava, Renato!

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Jarbas ou Anselmo?

Jarbas Pereira Marques
Jarbas Pereira Marques nasceu no Recife em 27 de agosto de 1948. Estudou no tradicional Colégio Porto Carreiro, que fica na Rua da Concórdia, na capital pernambucana. 

Foi ali que iniciou sua militância no movimento estudantil secundarista, na segunda metade da década de 60. Anos sombrios da ditadura militar implantada em 64, que acabou com as eleições diretas, suprimiu direitos políticos e constitucionais, impôs a censura, a perseguição política e a violenta repressão aos que se opunham ao regime.

A 10 dias de completar 20 anos de idade, Jarbas foi preso quando distribuía panfletos convocando para o congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Foi considerado subversivo e torturado pelos órgãos de repressão de Pernambuco. Saiu doente da prisão. Mas também saiu fortalecido nas convicções e no propósito de combater a ditadura, lutar pela democracia.

Na militância conheceu Tércia Maria Rodrigues, por quem apaixonou-se e com quem casou-se em 17 de dezembro de 1970. Moraram inicialmente em São Paulo mas regressaram ao Recife cerca de um ano depois, com a missão de organizar no Nordeste a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Foi na Livraria Moderna, centro do Recife, onde estava trabalhando, que Jarbas caiu novamente nas garras da repressão, no dia 08 de janeiro de 1973. Três dias antes, havia procurado a advogada Mércia de Albuquerque Ferreira, a quem relatou a suspeita de ter sido delatado por um agente da repressão infiltrado na VPR. Confiou a ela algumas fotos, documentos e revelou a angústia e a amargura da prisão iminente.

Em depoimento à Justiça, Mércia descreve Jarbas como "um tipo romântico e ingênuo" e diz que o aconselhou a fugir. Ele, porém, arriscou e entregou a própria vida para garantir a segurança da frágil esposa e da filhinha Nadejda, de apenas 9 meses. Por amor, entregou-se ao martírio para preservar filha e esposa às quais permaneceu fiel até o fim.

Preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, Jarbas foi trucidado em sessões de tortura. Três dias depois os jornais noticiaram sua morte e de mais cinco militantes da VPR na Granja São Bento, na cidade pernambucana de Paulista, todos presos e torturados até a morte e levados à chácara para forjar o cenário de um falso tiroteio com as forças policiais.

Amor, solidariedade, compaixão, fidelidade, definem Jarbas.

Soledad Barret Viedma, uma das cinco militantes assassinadas
Soledad Barret Viedma
junto com Jarbas, não teve a mesma "sorte" de Mércia. 

Paraguaia de nascimento, Sol viveu exilada na Argentina e no Uruguai devido ao ativismo político de sua família. Aos 17 anos, em Montevidéu, foi sequestrada por neonazistas que gravaram a suástica em suas coxas, com uma navalha, por se negar a gritar "Viva Hitler". 

Fugindo das perseguições, refugiou-se em Cuba, onde conheceu o brasileiro José Maria Ferreira de Araújo, militante da VPR que estava exilado na Ilha, com quem se casou teve uma filha. 

José Maria, o Arariboia retornou ao Brasil e foi capturado e morto em 1970. Sua morte fortaleceu em Soledad a disposição de lutar contra as sangrentas ditaduras militares nos países latino-americanos.

Passou a militar na VPR, onde conheceu José Anselmo dos Santos, amigo e companheiro de José Maria. Ex-sargento da Marinha, "cabo" Anselmo tinha liderado a revolta dos marinheiros, no Rio de Janeiro, em março de 64, dias antes do golpe militar. Foi preso pela ditadura, fugiu e exilou-se em Cuba. Na volta ao Brasil passou a integrar a VPR. 

Quando Sol foi presa, torturada e executada pelo delegado Fleury, em janeiro de 1973, estava grávida de cabo Anselmo. Quando foi ao necrotério do Recife, em frente ao Cemitério de Santo Amaro, à procura do corpo de Jarbas, a advogada Mércia encontrou seis corpos. Ela conta que "em um barril estava Soledad Barrett Viedma: ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas e, no fundo do barril se encontrava também um feto".

Cabo Anselmo
Cabo Anselmo, ao contrário de Jarbas, não protegeu Soledad. Sem remorso e sem dor ele a delatou e a entregou grávida ao delegado Fleury para ser executada, como fez com os outros cinco massacrados na Granja São Bento e com dezenas, talvez centenas, de companheiros entregues à tortura e à morte. Cabo Anselmo, na verdade, era agente policial infiltrado.

No livro Soledad no Recife, o escritor pernambucano Urariano Mota conta que Sol, antes de morrer apontou para o traidor e sentenciou: "Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século". 

Canalhice, covardia, torpeza, vilania, traição, definem cabo Anselmo. E cinismo! Assassino cruel de sua amorosa companheira e de seu filho, cabo Anselmo disse que o fez para salvar o Brasil do comunismo.

Na vida, sempre somos instados a tomar posição, a escolher entre Jarbas e cabo Anselmo. A maioria de nós escolhe Jarbas, ainda que isso represente a derrota e até a morte. Mas há quem se identifique com Anselmo. Escolhem Caim no lugar de Abel, Silvério no lugar de Tiradentes, Judas no lugar de Jesus.

Vi isso ainda ontem em vídeo publicizado por uma controversa coadjuvante da política local, no qual, cinicamente, justifica sua escolha por Temer no lugar de Dilma. Por amor ao Brasil, diz ela.
Infelizmente, no Brasil que ela diz amar não cabem os brasileiros.

Obrigado, querida!

"A gratidão é a virtude das almas nobres". 

(Esopo)

Presidenta Dilma Rousseff,

Do primeiro ao último dia de seus dois mandatos, em cada gesto seu, cada iniciativa, cada projeto, cada ação, você dignificou o voto que lhe confiei nas duas eleições presidenciais.

Há quem diga que não fez mais do que obrigação. Há até quem se beneficiou dos programas sociais implementados e/ou fortalecidos em seus governos, como o Minha Casa Minha Vida, o Bolsa Família, o Mais Médicos, o ProUni e o Pronatec, e, ainda assim, está vibrando com o golpe que lhe usurpou a Presidência.

Particularmente, não sou e nunca fui beneficiário de nenhum dos programas sociais do governo federal. Sequer sou usuário direto do SUS, exceto daquelas ações ligadas à Vigilância Sanitária.

Mas hoje, quando a traição e os mesquinhos interesses das nossas elites consumam o golpe contra seu mandato e contra a democracia, preciso lhe dizer: MUITO OBRIGADO!

Obrigado por colocar o combate à miséria e a fome dentre as prioridades de seu governo. 

Obrigado por defender direitos e programas que garantiram a inclusão de milhões de brasileiros. 

Obrigado pela expansão das universidades e institutos federais, o ProUni, o FIES e a política de cotas que garantiram o acesso ao ensino superior a milhares de filhos de trabalhadores, inclusive a dois dos meus filhos, Francisco e Pedro.

Obrigado pelas políticas afirmativas e emancipatórias implementadas em favor da população afrodescendente, das mulheres, dos indígenas, da juventude. 

Obrigado por não transigir com a corrupção nem ceder às chantagens. 

Obrigado por defender, com altivez, garra e serenidade, até o último segundo, a democracia expressa no voto de 54 milhões de brasileiros e brasileiras.

Obrigado por não sucumbir à violência golpista e infundir em nossos corações a esperança e apontar o caminho da luta para enfrentar a escalada fascista, golpista e retrógrada que se abate sobre o país.

Obrigado, obrigado, obrigado...

(Publicado originalmente no Facebook em 31/08/2016)

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Amor além da vida

Assim que as luzes se apagavam, ao som de “Theme from a Summer Place” as cortinas se abriam, revelando a enorme tela onde seria projetado o filme. Era o momento mais esperado.  Mas antes dele tinha o ritual de subir as escadarias, comprar o ingresso e comprar balas na cantina. Quando a tela se iluminava com o início da projeção, instantaneamente a meninada batia os pés no piso de madeira, fazendo um enorme barulhão. 

Não fui muitas vezes, mas é essa a lembrança que ficou das matinês de domingo à tarde no Cine São Joaquim. Quase sempre para assistir Tarzã. Na juventude fui algumas vezes, mas a sensação já era outra, embora a música de abertura, a cortina, a tela, as poltronas e o chão de madeira continuassem os mesmos. 

Dessa época me recordo da experiência do cine-clube, uma tentativa heroica e desesperada de salvar o cinema do inevitável fechamento. Universitários, professores e a elite intelectual da época se uniram e contribuíam com um valor mensal para manter o cinema, com direito a sessões seguidas de debate às sextas-feiras. O primeiro filme exibido pelo cine-clube foi Z, do Costa Gavras, isso lá pelos idos de 1982 ou 1983. 

Pouco tempo depois, quando já havia me mudado para Nova Odessa, o Cine São Joaquim fechou e o prédio abrigou um templo de uma igreja pentecostal. Final infeliz de mais uma sala de projeção que não resistiu ao advento do vídeo-cassete. 

Felizmente, duas décadas depois, o cinema seria reaberto, por iniciativa do empresário Acácio Cruz, agora com o nome de Cine Teatro Lúmine. A antiga sala, com mais de mil poltronas, deu origem a duas: uma para o teatro outra para o cinema. Mas perdeu o encanto. Nem a música toca mais. 

Também não me encantam as salas de cinema de shopping center. São apenas um apêndice desse templo dedicado ao consumismo. Me contento em assistir a bons filmes em casa mesmo, projetando na parede da sala. Foi assim que assisti, junto com a Marilda, o filme “Amor Além da Vida”. 

Vivíamos um momento de crise em nossas vidas, de dificuldade de aceitação de algumas situações. Eu, convicto de minhas posições, delas não abria mão e não entendia porque a Marilda se recusava a aceitar o que era óbvio e claro como a luz do dia. Daí resultavam os conflitos que, pouco a pouco, foram minando nossa vida comum.

Quando assistimos ao filme, juntos, um novo horizonte descortinou à minha frente. Na película, Robin Williams interpreta Chris Nielsen, que forma uma família feliz com sua esposa Annie e os filhos. Tudo começa a mudar quando os filhos morrem num acidente. Vem a dor, o sofrimento e a superação do trauma. Até que o próprio Chris morre num acidente. 

No paraíso, ele fica sabendo que Annie, tomada pela dor, cometera suicídio. E vai até o inferno procurá-la, mesmo avisado de que ela não o reconheceria. Mais do que ir até o inferno, ele decide lá ficar com Annie que, de fato, não o reconhecera nem se dispunha a deixar aquele lugar. O amor incondicional de Chris fez com que ele abrisse mão da eternidade no paraíso para ficar ao lado da pessoa amada, no inferno e sem ser por ela reconhecido. 

Aprendi que é assim na nossa vida. Precisamos mergulhar no “inferno” vivido pela pessoa amada para entendê-la e ajudá-la nas dificuldades. E quando temos essa capacidade, esse despojamento, esse amor verdadeiro transforma o inferno em paraíso. Graças ao que aprendemos no filme, Marilda e eu já superamos várias crises. E acrisolamos nosso amor com o fogo das profundezas dos “infernos”. A cada dia construímos nosso paraíso. Te amo, Linda.


(Publicado originalmente no Facebook em 25 de agosto de 2013)

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Feridas e cicatrizes



“Por detrás de uma pessoa que fere há sempre uma pessoa ferida. Ninguém faz os outros infelizes, se primeiro não for infeliz.”
(Augusto Cury)

Toda ferida, seja do corpo ou da alma, precisa de tempo e cuidados para ser curada. O processo de cura é doloroso, quase sempre demorado, mas necessário. E, ao final, restará uma cicatriz, “visível marca de um riscado inesperado, pra lembrar e nunca mais esquecer”, como canta a banda de rock pernambucana Nação Zumbi. Curada a ferida, a cicatriz permanece lá, por toda a vida, impedindo o esquecimento do que a provocou, motivando a abstenção de sua causa.

Simplesmente ignorar a ferida, não ajuda em nada. Você pode até escondê-la, cobri-la, abafá-la, disfarçá-la... mas ela continua lá, doendo, febril, muitas vezes sangrando. E o pior, pode infeccionar, gangrenar, levar a uma amputação, quiçá à morte por septicemia.

Em agosto de 2015, a empresária e política novaodessense Carol Moura dividiu as opiniões ao cobrir com tinta inscrições racistas, de orientação assumidamente nazista, pichadas no muro do cemitério municipal. Muitos aplaudiram a atitude da então prefeiturável, identificando nela um gesto de solidariedade aos haitianos, vítimas da odiosa pichação. Outros tantos classificaram a ação como oportunismo e demagogia.

Acho irrelevante discutir a motivação de Carol Moura para apagar a pichação. Mais importante é refletir sobre as consequências. Apagar a pichação não apagou o sentimento racista do(s) pichador(es). A ferida, ainda que coberta por tinta, continua aberta, doendo, sangrando. Ignorá-la, encobri-la, escondê-la é correr o risco de uma gangrena social, de uma violenta amputação racial e até de uma intolerância septicêmica que leve a óbito a convivência comunitária fundada na ética, no respeito, na solidariedade.

Penso que não é esse o caminho mais adequado para curar a ferida. Há uma via paralela. É preciso deixar a ferida aberta, exposta ao sol da justiça, combater os germes do ódio, do preconceito e do rancor com antissépticos apropriados, como o diálogo, a tolerância, o amor, o perdão. É um processo doloroso, demorado, mas necessário. Sem ele, nunca chegaremos à cicatriz, ao mesmo tempo sinal de cura e marca “pra lembrar e nunca mais esquecer”, evitando assim o reabrir da ferida.

Tem razão o psiquiatra colinense Augusto Cury. “Ninguém agride os outros sem primeiro se auto-agredir”. Os atos de rejeição, de exclusão e de morte, diz o teólogo Leonardo Boff, “começam no coração: nele se alimenta o preconceito, se aninha a má intenção e se elabora a antipatia”.

Considero que o ódio, que Boff define como “uma avassaladora energia de destruição”, é como uma brasa fumegante que a pessoa aperta na própria mão. Quanto mais queima e machuca, mais aperta. Se você está entre os que destilam ódio, rancor, raiva, preconceito, intolerância... tenha certeza de que tudo isso machuca a vida, provoca doenças, inclusive câncer.

Meu conselho: abra o coração, jogue fora a brasa. Garanto que se sentirá muito bem, assim fazendo. Veja bem, não estou dizendo pra jogar fora suas convicções, crenças e opções políticas. Apenas o ódio.

(Publicado originalmente no Varal de Notícias em 14/08/2015)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Balido submisso

“...os mais estúpidos, tais como as 
ovelhas, eram incapazes de aprender...”
(George Orwell - “A Revolução dos Bichos”)

Se pouco ou nada sei sobre cães e porcos, muito menos sobre ovelhas. Afinal, nunca tive uma. Baseada em diversas fábulas, algumas bem pueris outras geniais, a imagem que tenho desses animais é, digamos, simplória e estereotipada. Ovelhas, assim imagino, são dóceis, ingênuas, totalmente vulneráveis aos seus predadores, andam em rebanhos, dependendo sempre da voz de um pastor para orientar seu rumo. Sozinhas, sem quem as oriente, perdem-se com facilidade. Basta uma correr que as demais, desorientadas, correm atrás.


Li algum tempo atrás uma notícia de que em Istambul, na Turquia, alguns pastores deixaram o rebanho pastando à beira de um penhasco e afastaram-se um pouco para tomar seu café da manhã. Tomados de perplexidade, os pastores presenciaram uma ovelha, sem razão aparente, lançar-se ao precipício, sendo imediatamente seguida pelas outras 1500, resultando em 450 animais mortos. Só não pereceram todas porque a queda das últimas foi amortecida pela pilha de ovelhas que jazia inerte ao pé do despenhadeiro. 

Assim são as ovelhas. Volúveis, facilmente influenciáveis, “maria-vai-com-as-outras”, pra usar uma expressão bem brasileira. Comportamento bem diferente, paralelo, ao dos cães. E também ao dos porcos. Sobre esses e seus correspondentes na política, com seu característico apetite voraz, já comentei na coluna anterior, “Da lama à panela”. Faltou falar do papel das ovelhas no processo político.

No filme australiano “Babe”, as ovelhas cumprem sempre um papel secundário, de total submissão, primeiro aos cães, depois ao simpático porquinho que se esforça para ser um leitão-pastor. Não é diferente no clássico romance “A revolução dos bichos”, de George Orwell, onde a ingênua submissão das ovelhas, que beira a imbecilidade, é determinante para sufocar qualquer tentativa de questionamento ou rebelião à ditadura dos suínos liderados pelo porco-tirano Napoleão.

Um a um, os princípios da revolução dos bichos, os sete mandamentos que deveriam garantir a convivência harmônica na granja dos bichos, vão sofrendo adaptações para atender aos interesses e privilégios dos porcos. Mas as ovelhas, que sequer conseguiram decorar os sete mandamentos, além de nada questionar, suplantam todo argumento contrário a Napoleão com um balido uníssono: “quatro pernas bom, duas pernas ruim”.
Sua memória curta não permite lembrar como era a vida antes da revolução comandada por Napoleão, comparar se as condições de sobrevivência na granja estão piores ou melhores. Nem mesmo conseguem identificar se o que foi prometido, foi ou está sendo cumprido.

A metáfora de Orwell cai como luva sobre a conjuntura política da cidade. As mesmas ovelhas que antes, durante décadas, se submeteram passivamente ao jugo do granjeiro Jones, agora balem em defesa da “revolução napoleônica”. Vez por outra até ouvimos alguma voz isolada questionando o total abandono das promessas e compromissos de campanha do Napoleão local e os privilégios concedidos à sua vara de vorazes e insaciáveis suínos. 

Alguma ovelha incauta, como autêntica “maria-vai-com-as-outras”, até ensaia engrossar as críticas. Mas não demora a voltar atrás tão logo o eloquente e artificial discurso de Napoleão é propagado nas redes sociais pelos seus súditos devoradores de milho (ou milhões).

Há quem acredite que o alcaide vem perdendo o enorme apoio popular que o instalou no Paço e que de lá será expulso no pleito deste ano. Tenho minhas dúvidas. Aliás, não tenho. Estou convicto de que, tal como na obra de George Orwell, o rebanho ecoará um espetacular e estrondoso balido, devidamente adaptado aos novos tempos: “quatro pernas bom, duas pernas melhor”. 

Assim será até o dia em que as ovelhas descobrirem que não precisam dos porcos, nem de Napoleão nem do velho Jones. Que podem, autonomamente, determinar suas vidas, seu futuro, seu governo.

(Publicado originalmente no Facebook em 30/08/2015)