quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Amor além da vida

Assim que as luzes se apagavam, ao som de “Theme from a Summer Place” as cortinas se abriam, revelando a enorme tela onde seria projetado o filme. Era o momento mais esperado.  Mas antes dele tinha o ritual de subir as escadarias, comprar o ingresso e comprar balas na cantina. Quando a tela se iluminava com o início da projeção, instantaneamente a meninada batia os pés no piso de madeira, fazendo um enorme barulhão. 

Não fui muitas vezes, mas é essa a lembrança que ficou das matinês de domingo à tarde no Cine São Joaquim. Quase sempre para assistir Tarzã. Na juventude fui algumas vezes, mas a sensação já era outra, embora a música de abertura, a cortina, a tela, as poltronas e o chão de madeira continuassem os mesmos. 

Dessa época me recordo da experiência do cine-clube, uma tentativa heroica e desesperada de salvar o cinema do inevitável fechamento. Universitários, professores e a elite intelectual da época se uniram e contribuíam com um valor mensal para manter o cinema, com direito a sessões seguidas de debate às sextas-feiras. O primeiro filme exibido pelo cine-clube foi Z, do Costa Gavras, isso lá pelos idos de 1982 ou 1983. 

Pouco tempo depois, quando já havia me mudado para Nova Odessa, o Cine São Joaquim fechou e o prédio abrigou um templo de uma igreja pentecostal. Final infeliz de mais uma sala de projeção que não resistiu ao advento do vídeo-cassete. 

Felizmente, duas décadas depois, o cinema seria reaberto, por iniciativa do empresário Acácio Cruz, agora com o nome de Cine Teatro Lúmine. A antiga sala, com mais de mil poltronas, deu origem a duas: uma para o teatro outra para o cinema. Mas perdeu o encanto. Nem a música toca mais. 

Também não me encantam as salas de cinema de shopping center. São apenas um apêndice desse templo dedicado ao consumismo. Me contento em assistir a bons filmes em casa mesmo, projetando na parede da sala. Foi assim que assisti, junto com a Marilda, o filme “Amor Além da Vida”. 

Vivíamos um momento de crise em nossas vidas, de dificuldade de aceitação de algumas situações. Eu, convicto de minhas posições, delas não abria mão e não entendia porque a Marilda se recusava a aceitar o que era óbvio e claro como a luz do dia. Daí resultavam os conflitos que, pouco a pouco, foram minando nossa vida comum.

Quando assistimos ao filme, juntos, um novo horizonte descortinou à minha frente. Na película, Robin Williams interpreta Chris Nielsen, que forma uma família feliz com sua esposa Annie e os filhos. Tudo começa a mudar quando os filhos morrem num acidente. Vem a dor, o sofrimento e a superação do trauma. Até que o próprio Chris morre num acidente. 

No paraíso, ele fica sabendo que Annie, tomada pela dor, cometera suicídio. E vai até o inferno procurá-la, mesmo avisado de que ela não o reconheceria. Mais do que ir até o inferno, ele decide lá ficar com Annie que, de fato, não o reconhecera nem se dispunha a deixar aquele lugar. O amor incondicional de Chris fez com que ele abrisse mão da eternidade no paraíso para ficar ao lado da pessoa amada, no inferno e sem ser por ela reconhecido. 

Aprendi que é assim na nossa vida. Precisamos mergulhar no “inferno” vivido pela pessoa amada para entendê-la e ajudá-la nas dificuldades. E quando temos essa capacidade, esse despojamento, esse amor verdadeiro transforma o inferno em paraíso. Graças ao que aprendemos no filme, Marilda e eu já superamos várias crises. E acrisolamos nosso amor com o fogo das profundezas dos “infernos”. A cada dia construímos nosso paraíso. Te amo, Linda.


(Publicado originalmente no Facebook em 25 de agosto de 2013)

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Feridas e cicatrizes



“Por detrás de uma pessoa que fere há sempre uma pessoa ferida. Ninguém faz os outros infelizes, se primeiro não for infeliz.”
(Augusto Cury)

Toda ferida, seja do corpo ou da alma, precisa de tempo e cuidados para ser curada. O processo de cura é doloroso, quase sempre demorado, mas necessário. E, ao final, restará uma cicatriz, “visível marca de um riscado inesperado, pra lembrar e nunca mais esquecer”, como canta a banda de rock pernambucana Nação Zumbi. Curada a ferida, a cicatriz permanece lá, por toda a vida, impedindo o esquecimento do que a provocou, motivando a abstenção de sua causa.

Simplesmente ignorar a ferida, não ajuda em nada. Você pode até escondê-la, cobri-la, abafá-la, disfarçá-la... mas ela continua lá, doendo, febril, muitas vezes sangrando. E o pior, pode infeccionar, gangrenar, levar a uma amputação, quiçá à morte por septicemia.

Em agosto de 2015, a empresária e política novaodessense Carol Moura dividiu as opiniões ao cobrir com tinta inscrições racistas, de orientação assumidamente nazista, pichadas no muro do cemitério municipal. Muitos aplaudiram a atitude da então prefeiturável, identificando nela um gesto de solidariedade aos haitianos, vítimas da odiosa pichação. Outros tantos classificaram a ação como oportunismo e demagogia.

Acho irrelevante discutir a motivação de Carol Moura para apagar a pichação. Mais importante é refletir sobre as consequências. Apagar a pichação não apagou o sentimento racista do(s) pichador(es). A ferida, ainda que coberta por tinta, continua aberta, doendo, sangrando. Ignorá-la, encobri-la, escondê-la é correr o risco de uma gangrena social, de uma violenta amputação racial e até de uma intolerância septicêmica que leve a óbito a convivência comunitária fundada na ética, no respeito, na solidariedade.

Penso que não é esse o caminho mais adequado para curar a ferida. Há uma via paralela. É preciso deixar a ferida aberta, exposta ao sol da justiça, combater os germes do ódio, do preconceito e do rancor com antissépticos apropriados, como o diálogo, a tolerância, o amor, o perdão. É um processo doloroso, demorado, mas necessário. Sem ele, nunca chegaremos à cicatriz, ao mesmo tempo sinal de cura e marca “pra lembrar e nunca mais esquecer”, evitando assim o reabrir da ferida.

Tem razão o psiquiatra colinense Augusto Cury. “Ninguém agride os outros sem primeiro se auto-agredir”. Os atos de rejeição, de exclusão e de morte, diz o teólogo Leonardo Boff, “começam no coração: nele se alimenta o preconceito, se aninha a má intenção e se elabora a antipatia”.

Considero que o ódio, que Boff define como “uma avassaladora energia de destruição”, é como uma brasa fumegante que a pessoa aperta na própria mão. Quanto mais queima e machuca, mais aperta. Se você está entre os que destilam ódio, rancor, raiva, preconceito, intolerância... tenha certeza de que tudo isso machuca a vida, provoca doenças, inclusive câncer.

Meu conselho: abra o coração, jogue fora a brasa. Garanto que se sentirá muito bem, assim fazendo. Veja bem, não estou dizendo pra jogar fora suas convicções, crenças e opções políticas. Apenas o ódio.

(Publicado originalmente no Varal de Notícias em 14/08/2015)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Balido submisso

“...os mais estúpidos, tais como as 
ovelhas, eram incapazes de aprender...”
(George Orwell - “A Revolução dos Bichos”)

Se pouco ou nada sei sobre cães e porcos, muito menos sobre ovelhas. Afinal, nunca tive uma. Baseada em diversas fábulas, algumas bem pueris outras geniais, a imagem que tenho desses animais é, digamos, simplória e estereotipada. Ovelhas, assim imagino, são dóceis, ingênuas, totalmente vulneráveis aos seus predadores, andam em rebanhos, dependendo sempre da voz de um pastor para orientar seu rumo. Sozinhas, sem quem as oriente, perdem-se com facilidade. Basta uma correr que as demais, desorientadas, correm atrás.


Li algum tempo atrás uma notícia de que em Istambul, na Turquia, alguns pastores deixaram o rebanho pastando à beira de um penhasco e afastaram-se um pouco para tomar seu café da manhã. Tomados de perplexidade, os pastores presenciaram uma ovelha, sem razão aparente, lançar-se ao precipício, sendo imediatamente seguida pelas outras 1500, resultando em 450 animais mortos. Só não pereceram todas porque a queda das últimas foi amortecida pela pilha de ovelhas que jazia inerte ao pé do despenhadeiro. 

Assim são as ovelhas. Volúveis, facilmente influenciáveis, “maria-vai-com-as-outras”, pra usar uma expressão bem brasileira. Comportamento bem diferente, paralelo, ao dos cães. E também ao dos porcos. Sobre esses e seus correspondentes na política, com seu característico apetite voraz, já comentei na coluna anterior, “Da lama à panela”. Faltou falar do papel das ovelhas no processo político.

No filme australiano “Babe”, as ovelhas cumprem sempre um papel secundário, de total submissão, primeiro aos cães, depois ao simpático porquinho que se esforça para ser um leitão-pastor. Não é diferente no clássico romance “A revolução dos bichos”, de George Orwell, onde a ingênua submissão das ovelhas, que beira a imbecilidade, é determinante para sufocar qualquer tentativa de questionamento ou rebelião à ditadura dos suínos liderados pelo porco-tirano Napoleão.

Um a um, os princípios da revolução dos bichos, os sete mandamentos que deveriam garantir a convivência harmônica na granja dos bichos, vão sofrendo adaptações para atender aos interesses e privilégios dos porcos. Mas as ovelhas, que sequer conseguiram decorar os sete mandamentos, além de nada questionar, suplantam todo argumento contrário a Napoleão com um balido uníssono: “quatro pernas bom, duas pernas ruim”.
Sua memória curta não permite lembrar como era a vida antes da revolução comandada por Napoleão, comparar se as condições de sobrevivência na granja estão piores ou melhores. Nem mesmo conseguem identificar se o que foi prometido, foi ou está sendo cumprido.

A metáfora de Orwell cai como luva sobre a conjuntura política da cidade. As mesmas ovelhas que antes, durante décadas, se submeteram passivamente ao jugo do granjeiro Jones, agora balem em defesa da “revolução napoleônica”. Vez por outra até ouvimos alguma voz isolada questionando o total abandono das promessas e compromissos de campanha do Napoleão local e os privilégios concedidos à sua vara de vorazes e insaciáveis suínos. 

Alguma ovelha incauta, como autêntica “maria-vai-com-as-outras”, até ensaia engrossar as críticas. Mas não demora a voltar atrás tão logo o eloquente e artificial discurso de Napoleão é propagado nas redes sociais pelos seus súditos devoradores de milho (ou milhões).

Há quem acredite que o alcaide vem perdendo o enorme apoio popular que o instalou no Paço e que de lá será expulso no pleito deste ano. Tenho minhas dúvidas. Aliás, não tenho. Estou convicto de que, tal como na obra de George Orwell, o rebanho ecoará um espetacular e estrondoso balido, devidamente adaptado aos novos tempos: “quatro pernas bom, duas pernas melhor”. 

Assim será até o dia em que as ovelhas descobrirem que não precisam dos porcos, nem de Napoleão nem do velho Jones. Que podem, autonomamente, determinar suas vidas, seu futuro, seu governo.

(Publicado originalmente no Facebook em 30/08/2015)

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Rumo ao abatedouro

No corredor da morte
Nasci e morei na roça até os 10 anos, mas não entendo nada de bois. Só tínhamos duas vaquinhas no pasto, que produziam o leite para o consumo diário da família e a produção artesanal de um queijo com o que sobrava. Meu pai sempre foi agricultor e acho que nunca sequer sonhou ser pecuarista.

Vegetariano há 21 anos, passei a ver a pecuária como sinônimo de violência e morte. Violência contra os animais, violência contra o meio ambiente, violência contra nossa saúde.

Essa "ignorância bovina" me deixou intrigado com o sonho que tive esta noite. Afinal, sonhei com um boi. Ou melhor, sonhei que era parte de um boi. Normalmente não me lembro dos sonhos ao acordar, mas esse, com uma riqueza enorme de detalhes, está martelando em minha cabeça.

No meu sonho eu era uma pequena célula, mais precisamente um linfócito, de um grande e forte boi. Nem sei se o sistema imunológico bovino tem linfócitos, mas no meu sonho tinha. No começo esse boi vivia livre numa grande pastagem e era saudável. A alimentação equilibrada e natural proporcionava a normalidade das funções vitais, o equilíbrio energético e a imunidade.

O boi vivia feliz, numa perfeita simbiose com as bactérias e protozoários da flora ruminal. Até que apareceram alguns parasitas que tomaram posse do grande corpo, trazendo desequilíbrio e destruição das defesas naturais. Pouco a pouco o boi foi adoecendo.

Os parasitas devoravam com voracidade sem igual todos os nutrientes absorvidos, condenando o boi à magreza, à desnutrição e à anemia, além da morte prematura por inanição de milhões de células. Fraco, o boi contraía sucessivas e graves infecções a cada espirro dos colegas de pasto.

Então resolveram consultar uma clínica veterinária. No meu sonho, consegui identificar a sigla FMI na fachada dessa clínica, mas nenhuma explicação do seu significado. A equipe de veterinários, ortodoxa em suas terapias, prescrevia doses cavalares (ou bovinas, sei lá!) de remédio amargo para tentar amenizar os sintomas.


Os efeitos eram devastadores. As drogas produziam efeitos colaterais fortíssimos que exigiam trabalho redobrado dos órgãos, sistemas e células, além de estrangular e sufocar o sistema imunológico, adoecendo e matando milhares de células. 

Felizmente sobrevivi. E, infelizmente, os parasitas também. Dotados de uma inteligência incrível, eles refugiavam-se em locais inacessíveis aos medicamentos e voltavam a atacar assim que os efeitos passavam, devorando a parca comida da dieta restritiva imposta pelos veterinários.

As visitas da equipe da clínica FMI eram constantes e os remédios cada vez mais amargos. Para desgraça do boi e prazer dos parasitas. Até o dia em que o boi cansou e, por conta própria, resolveu procurar outro tratamento. Nada de veterinários, nada de medidas ortodoxos, nada de remédios amargos.

O novo tratamento consistia apenas no fortalecimento do sistema imunológico, na normalização das funções vitais, na adequada nutrição e energização das células, garantindo que, minimamente, as vitaminas, minerais e proteínas chegassem a todas elas. Em outras palavras, distribuição mais equitativa dos nutrientes.

Tratamento lento, mas progressivo. Pouco a pouco, tecidos necrosados começaram a regenerar-se, infecções crônicas foram debeladas, o sangue foi revigorado. O boi foi ganhando peso e energia, o pelo ficou lustroso. Até sua auto estima cresceu. E ele conseguiu ficar de pé e caminhar novamente. Passos lentos, ainda, mas firmes. Voltou a alegria de viver.

O problema é que o tratamento natural não eliminou os parasitas. Eles até se aquietaram por um tempo, pareciam conformados com a redução da comida que, agora, era melhor distribuída. Mas não. A essência dos parasitas é sugar mais e mais de seu hospedeiro.

A saúde do boi em franca recuperação, suportando até mesmo infecções que abateram outros bois do rebanho, logo atraiu olhares externos. E a ira do antigo veterinário que, aliado aos parasitas, passou a sabotar o novo tratamento. 

Trataram de espalhar carrapatos sobre todo o couro do boi. Carrapatos que lhe sugavam o sangue avidamente. E, então, os parasitas passaram a propagar às células a ideia de que a culpa era do novo tratamento. Que os carrapatos eram partidários e amigos da nova equipe de terapeutas, que a intenção deles era transformar o sangue verde e amarelo (sim, o boi tinha sangue verde e amarelo) em vermelho.

A terapeuta que chefiava a equipe até tentou explicar que o tratamento estava indo bem, que o corpo conviveria ainda algum tempo com os parasitas e que esses deixariam de existir quando a saúde estivesse completamente restabelecida e os hábitos saudáveis consolidados. Mas não teve jeito. E, para tentar contornar a situação, a terapeuta cedeu aos apelos e, de forma paliativa, ministrou carrapaticidas.

Foi um desastre. O veneno até eliminou alguns carrapatos, mas não foi suficiente para conter a infestação, pois esses artrópodes têm uma capacidade de reprodução incrível. E, pra complicar, atingiu a corrente sanguínea, intoxicando as células, enfraquecendo e desorientando o sistema imunológico. 

Alguns vírus oportunistas atacaram, invadiram algumas células e passaram a reproduzir-se aceleradamente. As células invadidas, insufladas pelos parasitas de sempre, voltaram-se contra o organismo, deprimindo-o, enfraquecendo-o, culpando-o pela infestação de carrapatos.

Não sei se células têm sentimentos, mas no meu sonho essas células dominadas pelos parasitas encheram-se de ódio e passaram a atacar todas as demais células do corpo. Os neurônios entraram em colapso, as sinapses foram interrompidas e o corpo passou a orientar-se, de forma suicida, pela rede de informações retro-virais, tudo orientado pelos seculares parasitas.

No meio disso tudo, me vi um valente linfócito, unido a outros linfócitos, leucócitos, neutrófilos, monócitos, basófilos e eosinófilos, lutando desesperadamente para combater os parasitas e tentar reverter o quadro. Não sem enfrentar provocações irônicas, agressões e ofensas das células dominadas, nos acusando de defender os carrapatos.

No meio dessa luta inglória, pude ver o boi, cabisbaixo, caminhando pesadamente para o abatedouro. A cada etapa dessa caminhada, no estreito corredor, uma porteira se fecha. Várias já fechadas, restando apenas uma. Algumas células combatentes, companheiras nessa luta, desistem, entregam os pontos. Outras, iludidas, tentam nos convencer que é melhor uma aliança com os carrapatos para ganhar força e enfrentar os parasitas mais à frente.

Não percebem que os carrapatos são tão inimigos quanto os parasitas, nem que tudo estará acabado quando a haste metálica do revólver pneumático atingir o cérebro ou a marreta estraçalhar a caixa craniana. Só os vermes sobreviverão na carniça.

O sonho vira pesadelo. Desesperadamente tento acordar outras células desse estado de torpor. Sem sucesso! Mas não tenho outra saída. Vou resistir até o fim. Na esperança de que ainda consigamos, antes do momento derradeiro, provocar uma febre com ataque convulsivo que, com os movimentos anárquicos dos membros, seja capaz de romper os muros e livrar o boi do corredor da morte.

No final das contas quem acordou fui eu. Não o linfócito, eu mesmo, João. E estou até agora tentando decifrar a mensagem do sonho. Alguém pode me ajudar?

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Lucidez

Sandra, 41 anos, moradora de rua
“Hoje eu tô meio maluca”. Ela foi logo avisando quando se aproximou de nós, no Largo do Rosário, no final da tarde. Como todos que estavam na Praça, demonstrava descontentamento com o golpe de Estado em curso no país e, ao seu jeito, bradava Fora Temer.

“Posso matar o Temer agora?” – questionou, sorriso matreiro no rosto. Rimos junto e autorizei: “Fique à vontade”. Ela, então, pediu licença, tirou da mochila uma pequena garrafa pet com cachaça e matou um gole.

O cheiro da aguardente se acentuou. E ela estampou um sorriso de satisfação. Tentei imaginar quantos sonhos desfeitos, quantas ilusões perdidas, quantas decepções a levaram a buscar na embriaguês o alívio das dores da vida.

Foi quando viu em minha mão o único cartaz da manifestação que pedia “VOLTA, DILMA!” Não se conteve. “Posso segurar?”, perguntou, já tirando-o das minhas mãos. Sorri, assentindo.

Seus olhos fitavam o cartaz como os de uma criança à frente duma vitrine de doces. Os dedos deslizavam sobre o nome da Presidenta, como se acariciassem o próprio rosto de Dilma Roussef. Foram alguns segundos de êxtase que se repetiram várias vezes ao longo da manifestação.

Resoluta, decretou: “Vou com vocês até o fim!”. E, de fato, foi. Não desgrudou um segundo sequer do cartaz, que exibia orgulhosa a todos que passavam. Posou para fotos ao nosso lado, dançou ao som do batuque dos jovens da UJS e gritou “Fora, Temer” em todo o percurso da caminhada contra o golpe.

Às vezes, durante o trajeto que saiu pela Glicério, subiu o calçadão da 13 de Maio e desceu pela Senador Saraiva e a Campos Sales até o ponto inicial, sumia de nossas vistas. Mas logo reaparecia e, sempre sorrindo, justificava: “Me perdi de vocês!”

Querida, delícia, bela, linda... Foram os adjetivos que a vi atribuir à Presidenta Dilma, sempre decretando que “ela vai voltar, precisa voltar”. Na dispersão do protesto, novamente no Largo do Rosário, a perdemos de vista. E ela ficou com meu cartaz. Talvez, nesta noite, durma abraçada a ele numa calçada fria ou sob alguma marquise de Campinas.

Sandra é o seu nome. E vai fazer 41 anos. Vive incógnita nas ruas da metrópole, quase invisível. Talvez só percebam o odor forte de suor misturado com o bafo da cachaça. Talvez a julguem maluca, como ela se autoproclama.

Porém, dizia Aristófanes, dramaturgo grego da antiguidade, “a embriaguez passa, mas a estupidez dura para sempre”. Estupidez de um sistema que se funda na injustiça, na exploração, na desigualdade, na má distribuição das riquezas, na marginalização e na exclusão.

Estupidez de uma elite que forjou uma crise política, sabotou um governo, armou o golpe, apeou do poder político a Presidenta legitimamente eleita. Estupidez daqueles midiotizados que, mesmo não integrando essa elite, bateu panelas, vestiu-se de verde e amarelo e foi às ruas pedir o impeachment da Presidenta, a prisão de Lula e o fim do PT.

Não, Sandra, você não é maluca, não é louca. Parafraseando o nosso inesquecível maluco beleza, “é o mundo que não entende sua lucidez”.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Sobrenome

Até mais do que o próprio nome, é o sobrenome que constitui nossa identidade. Ele nos vincula à nossa origem familiar e lembra nosso pertencimento a um grupo social. O sobrenome também marca nossa diferença em relação às coisas, às flores, brinquedos e demais objetos, como afirma o compositor Toquinho na música Gente tem sobrenome: “coisas não têm sobrenome. Mas a gente sim.”

Gosto do meu sobrenome. Martins, acredita-se, deriva do nome latino Martinici, que significa belicoso, guerreiro. Há ainda versões que consideram meu sobrenome como o diminutivo de Marte, o deus da guerra. Mas não é isso o que me faz gostar dele, tampouco a sua sonoridade ou uma eventual fidalguia. Me encanta em meu sobrenome não o que ele significa, mas sim o que representa.

Muito comum em toda a Península Ibérica, chegou ao Brasil através dos espanhóis e portugueses, um deles o meu avô paterno, Joaquim Martins, português de Trás-os-Montes.

Pouco sei da história de meu avô antes de chegar ao Brasil. Até tenho curiosidade. Descobrir onde viveram seus pais, meus bisavós, conhecer a casa onde nasceu e cresceu, se é que ela ainda existe, pisar no chão dos meus ancestrais, sentir ali sua energia, quem sabe até encontrar algum parente distante.

Mas isso não é o essencial. O que importa, de fato, é a história que conheço. A família que meu avô constituiu aqui. Não o conheci. Meu pai, Annibal Martins, era ainda jovenzinho quando ele faleceu. Mas pelo sobrenome me sinto conectado a ele, a meu pai, aos meus tios e tias, todos já falecidos. E também aos meus primos, mesmo aqueles que, por força do patronímico, perderam o sobrenome Martins.

Carregar o sobrenome Martins depois do meu nome representa embeber-me de toda essa história. Não sou um João ninguém nem um João qualquer. Sou o João Martins. E me orgulho disso. Das qualidades e defeitos, conquistas e derrotas, do vigor e das fragilidades da minha família.

Por isso, fico até encabulado quando vejo alguém rejeitar seu sobrenome, independente da razão. Renegar o sobrenome é renunciar à própria história, a essência do próprio ser e até à própria identidade. É rechaçar a trajetória dos ancestrais. É querer ser rio sem nascente.

Sem abrir mão do Martins, até aceitaria acrescentar um sobrenome se essa opção me fosse dada. E seria outro sobrenome de origem latina, que também entrou no Brasil através dos portugueses e que, acredita-se, descende da tradicional Casa Real de Aragão.

Não o escolheria, entretanto, pela origem nobre, mas porque encarna a alma do povo brasileiro e suas mais nobres características: a solidariedade, a tolerância, a criatividade, a alegria, a esperança, a perseverança, a generosidade, a jovialidade e a resiliência.

Por tudo o que representa, escolheria o sobrenome Silva e, de quebra, ainda renderia homenagem à minha avó paterna, Antonia Dias da Silva, também portuguesa, bem como à minha esposa (Deo)Linda Marilda da Silva Martins, que herdou o sobrenome Silva de seu pai e o deu em herança aos nossos filhos.


Publicado originalmente no Facebook em 24/02/2016


P.S. - Muitas outras pessoas seriam merecedoras de minha homenagem, caso pudesse adotar o sobrenome Silva, dentre elas o sempre Presidente Lula, meu compadre frei Carlos Silva e o maratonista olímpico Solonei Silva, que é meu conterrâneo. 

E hoje, mais uma entra nesse rol: Rafaela Silva, judoca medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Ela é a cara do Brasil real: mulher, negra, pobre, vítima de racismo... E vencedora! Razões para desistir ela teve de sobra, desde que nasceu. Mas ela é brasileira e não desiste nunca.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Uma flor pela paz

O "tank man", na Praça da Paz Celestial
Tiananmen, a Praça da Paz Celestial, no centro de Pequim, foi palco de uma cena insólita no distante 5 de junho de 1989. Um jovem estudante posiciona-se de pé, sozinho, em frente a uma coluna de tanque chineses que avançam pela avenida Chang'na. O primeiro tanque da fila tenta desviar mas o homem, segurando apenas uma sacola em cada mão, repetidamente se coloca à frente e força a parada do comboio. Em seguida escala o tanque e conversa com o soldado.

O que dizer de uma pessoa desarmada enfrentando mais de uma dezena de tanques blindados? Irracional, no mínimo. Ainda mais sabendo que no dia anterior, no mesmo local, os tanques haviam esmagado veículos e pessoas que participavam dos protestos contra a repressão aos direitos individuais e as condições de vida degradadas após a abertura econômica da China.

Mais do que a ação em si, o que vale é o simbolismo que ela carrega. A imagem do jovem correu o mundo rapidamente, virou capa dos principais jornais e revistas. Até hoje sua identidade é desconhecida, tal como seu paradeiro. O que conversou com o soldado-piloto do tanque também ninguém sabe. O fato, porém, é que depois daquele 5 de junho a China abrandou a linha-dura.


Uma flor pela paz
22 anos antes, outra cena insólita havia marcado os protestos contra a guerra do Vietnã, em frente ao Pentágono, na capital estadunidense. Foi no 21 de outubro de 1967. Uma jovem estudante de 17 anos enfrenta soldados perfilados com fuzis em punho, baionetas caladas. Suas armas? Um olhar gentil e uma flor nas mãos, que tenta colocar no cano da arma de um dos soldados da Guarda Nacional.

Uma flor contra dezenas de fuzis. Aqui, como em Tiananmen, a força é do simbolismo. Da militância pela paz, da resistência pacífica, da não-violência idealizada e praticada na Índia por Mahatma Gandhi. Dessa jovem é conhecido o nome e o paradeiro. Jan Rose Kasmir, hoje com 65 anos, vive com sua família na Dinamarca.



Chico Mendes, com seringueiros, organizando um dos muitos empates
Há exemplos também no Brasil. Xapuri, município do estado do Acre, revelou ao mundo formas pacíficas de resistência. A partir de 1976, sob a liderança de Chico Mendes, famílias de seringueiros passaram a organizar os empates para enfrentar as ações de desmatamento empreendidas pelos pecuaristas. Homens, mulheres, crianças e idosos, de braços entrelaçados, colocavam-se à frente dos peões e jagunços, abraçando as árvores ou cercando os tratores, numa tentativa de convencê-los a baixarem as motosserras e conscientizá-los de que desmatando a floresta eles próprios estariam ameaçados.

Chico Mendes foi assassinado em dezembro de 1988. Até hoje, porém, seu nome simboliza a luta pela preservação das florestas e do uso sustentável de seus recursos.

Dias atrás, São Paulo também presenciou um desses atos inusitados. Aos 75 anos de idade, Eduardo Suplicy colocou-se à frente da Tropa de Choque e deitou-se no asfalto na tentativa de impedir a reintegração de posse de um terreno da Prefeitura, gesto que foi seguido pelos moradores. O ex-senador e ex-secretário de Direitos Humanos da capital foi levado pelos policiais e permaneceu detido três horas por desacato a autoridade. Seu gesto, porém, impediu violência ainda maior da PM contra os moradores que acabaram desabrigados.

Suplicy enfrenta deitado as botas da Tropa de Choque
Situações de flagrante injustiça, violência institucionalizada, opressão dos governantes contra o povo ou ameaça contra a vida, justificam os atos de desobediência civil. Se a lei não promove a justiça, seu descumprimento torna-se legítimo, contra a violação ou a ameaça aos direitos civis, políticos e sociais das pessoas.

Desobediência civil, direito de resistência... É o que nos resta hoje para enfrentar a situação de ruptura institucional que, embora revestida de legalidade e sustentada pelos que deviam zelar pela defesa do Estado Democrático de Direito, não passa de um golpe de Estado perpetrado por uma quadrilha que usurpou a Presidência da República, ameaça destruir direitos sociais e trabalhistas e entregar o patrimônio do povo brasileiro às multinacionais.