terça-feira, 9 de agosto de 2016

Lucidez

Sandra, 41 anos, moradora de rua
“Hoje eu tô meio maluca”. Ela foi logo avisando quando se aproximou de nós, no Largo do Rosário, no final da tarde. Como todos que estavam na Praça, demonstrava descontentamento com o golpe de Estado em curso no país e, ao seu jeito, bradava Fora Temer.

“Posso matar o Temer agora?” – questionou, sorriso matreiro no rosto. Rimos junto e autorizei: “Fique à vontade”. Ela, então, pediu licença, tirou da mochila uma pequena garrafa pet com cachaça e matou um gole.

O cheiro da aguardente se acentuou. E ela estampou um sorriso de satisfação. Tentei imaginar quantos sonhos desfeitos, quantas ilusões perdidas, quantas decepções a levaram a buscar na embriaguês o alívio das dores da vida.

Foi quando viu em minha mão o único cartaz da manifestação que pedia “VOLTA, DILMA!” Não se conteve. “Posso segurar?”, perguntou, já tirando-o das minhas mãos. Sorri, assentindo.

Seus olhos fitavam o cartaz como os de uma criança à frente duma vitrine de doces. Os dedos deslizavam sobre o nome da Presidenta, como se acariciassem o próprio rosto de Dilma Roussef. Foram alguns segundos de êxtase que se repetiram várias vezes ao longo da manifestação.

Resoluta, decretou: “Vou com vocês até o fim!”. E, de fato, foi. Não desgrudou um segundo sequer do cartaz, que exibia orgulhosa a todos que passavam. Posou para fotos ao nosso lado, dançou ao som do batuque dos jovens da UJS e gritou “Fora, Temer” em todo o percurso da caminhada contra o golpe.

Às vezes, durante o trajeto que saiu pela Glicério, subiu o calçadão da 13 de Maio e desceu pela Senador Saraiva e a Campos Sales até o ponto inicial, sumia de nossas vistas. Mas logo reaparecia e, sempre sorrindo, justificava: “Me perdi de vocês!”

Querida, delícia, bela, linda... Foram os adjetivos que a vi atribuir à Presidenta Dilma, sempre decretando que “ela vai voltar, precisa voltar”. Na dispersão do protesto, novamente no Largo do Rosário, a perdemos de vista. E ela ficou com meu cartaz. Talvez, nesta noite, durma abraçada a ele numa calçada fria ou sob alguma marquise de Campinas.

Sandra é o seu nome. E vai fazer 41 anos. Vive incógnita nas ruas da metrópole, quase invisível. Talvez só percebam o odor forte de suor misturado com o bafo da cachaça. Talvez a julguem maluca, como ela se autoproclama.

Porém, dizia Aristófanes, dramaturgo grego da antiguidade, “a embriaguez passa, mas a estupidez dura para sempre”. Estupidez de um sistema que se funda na injustiça, na exploração, na desigualdade, na má distribuição das riquezas, na marginalização e na exclusão.

Estupidez de uma elite que forjou uma crise política, sabotou um governo, armou o golpe, apeou do poder político a Presidenta legitimamente eleita. Estupidez daqueles midiotizados que, mesmo não integrando essa elite, bateu panelas, vestiu-se de verde e amarelo e foi às ruas pedir o impeachment da Presidenta, a prisão de Lula e o fim do PT.

Não, Sandra, você não é maluca, não é louca. Parafraseando o nosso inesquecível maluco beleza, “é o mundo que não entende sua lucidez”.

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