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Sandra, 41 anos, moradora de rua |
“Posso matar o Temer agora?” – questionou, sorriso matreiro no rosto. Rimos junto e autorizei: “Fique à vontade”. Ela, então, pediu licença, tirou da mochila uma pequena garrafa pet com cachaça e matou um gole.
O cheiro da aguardente se acentuou. E ela estampou um sorriso de satisfação. Tentei imaginar quantos sonhos desfeitos, quantas ilusões perdidas, quantas decepções a levaram a buscar na embriaguês o alívio das dores da vida.
Foi quando viu em minha mão o único cartaz da manifestação que pedia “VOLTA, DILMA!” Não se conteve. “Posso segurar?”, perguntou, já tirando-o das minhas mãos. Sorri, assentindo.
Seus olhos fitavam o cartaz como os de uma criança à frente duma vitrine de doces. Os dedos deslizavam sobre o nome da Presidenta, como se acariciassem o próprio rosto de Dilma Roussef. Foram alguns segundos de êxtase que se repetiram várias vezes ao longo da manifestação.
Resoluta, decretou: “Vou com vocês até o fim!”. E, de fato, foi. Não desgrudou um segundo sequer do cartaz, que exibia orgulhosa a todos que passavam. Posou para fotos ao nosso lado, dançou ao som do batuque dos jovens da UJS e gritou “Fora, Temer” em todo o percurso da caminhada contra o golpe.
Às vezes, durante o trajeto que saiu pela Glicério, subiu o calçadão da 13 de Maio e desceu pela Senador Saraiva e a Campos Sales até o ponto inicial, sumia de nossas vistas. Mas logo reaparecia e, sempre sorrindo, justificava: “Me perdi de vocês!”
Querida, delícia, bela, linda... Foram os adjetivos que a vi atribuir à Presidenta Dilma, sempre decretando que “ela vai voltar, precisa voltar”. Na dispersão do protesto, novamente no Largo do Rosário, a perdemos de vista. E ela ficou com meu cartaz. Talvez, nesta noite, durma abraçada a ele numa calçada fria ou sob alguma marquise de Campinas.
Sandra é o seu nome. E vai fazer 41 anos. Vive incógnita nas ruas da metrópole, quase invisível. Talvez só percebam o odor forte de suor misturado com o bafo da cachaça. Talvez a julguem maluca, como ela se autoproclama.
Porém, dizia Aristófanes, dramaturgo grego da antiguidade, “a embriaguez passa, mas a estupidez dura para sempre”. Estupidez de um sistema que se funda na injustiça, na exploração, na desigualdade, na má distribuição das riquezas, na marginalização e na exclusão.
Estupidez de uma elite que forjou uma crise política, sabotou um governo, armou o golpe, apeou do poder político a Presidenta legitimamente eleita. Estupidez daqueles midiotizados que, mesmo não integrando essa elite, bateu panelas, vestiu-se de verde e amarelo e foi às ruas pedir o impeachment da Presidenta, a prisão de Lula e o fim do PT.
Não, Sandra, você não é maluca, não é louca. Parafraseando o nosso inesquecível maluco beleza, “é o mundo que não entende sua lucidez”.
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