sábado, 25 de junho de 2016

O tempo de Deus

Foi a fé que tirou Abrão de Ur, na Caldéia, e o colocou a caminho da terra prometida. Foi a fé que o transformou em Abraão, pai de uma grande descendência, tão grande quanto o número de estrelas no céu. 

Mas a fé nunca tornou fáceis as coisas para Abraão. Já idoso, com a esposa Sara também velha e estéril, Abraão por várias vezes duvidou da promessa de Deus. Nem por isso deixou de ser o homem da fé. 

Por sugestão de Sara, Abraão também tentou apressar a realização da promessa, usando o subterfúgio de procriar com uma escrava de Sara. Agar deu-lhe um filho, Ismael, que legalmente era seu herdeiro legítimo. Mas esse não era o caminho do Absoluto. Nem o seu tempo. Quando todas as esperanças já tinham acabado, eis que Sara concebeu e deu à luz Isaac, o herdeiro prometido.

A história de Abraão me veio à cabeça assim que ouvi o desabafo da Marilda naqueles primeiros dias de novembro de 1995. “Olha aqui, João Martins, você pode ter um filho com quem você quiser, porque eu desisti. Chega!” 


O desespero não era sem razão. Uma gravidez tubária, em 1988, já lhe custara uma trompa, reduzindo pela metade a possibilidade de uma nova concepção. Depois a decepção de um filho natimorto, em 1991. Agora, quando a esperança tinha renascido após um tratamento natural que eliminou um cisto ovariano de grandes proporções, vem uma gestação anembrionária. 

Nunca tínhamos ouvido falar disso, mas o médico, o mesmo dr. Décio Feola, explicou direitinho depois de repetir exames e ultrassons. O óvulo foi fecundado, implantou-se no útero, mas o embrião não se desenvolveu. É o chamado ovo cego. Só restava a alternativa de mais uma curetagem que, se não me falha a memória, foi feita no dia 7 de novembro.

A Marilda, tanto quanto eu, sonhava com uma descendência. Já tínhamos a Juliana, que amei desde a concepção e adotei como filha tão logo perdeu o pai. Mas desejávamos um filho que fosse fruto do nosso grande amor. 


Ao longo daqueles oito anos de vida comum e de tantas tentativas frustradas, de tantas buscas, chegamos a pensar na adoção e até numa fertilização artificial. Mas assim como aconteceu com Abraão, algo nos dizia que esse não era o projeto de Deus para nossas vidas. 

Veio o tratamento natural e a chama reacendeu em nossos corações, uma alegria incontida explodindo no corpo e na alma. Mas bastou o primeiro ultrassom para tudo isso ser substituído pela angústia, a incerteza, a tristeza. E, então, em seu desespero, assim como fez Sara, Marilda me sugere procurar minha descendência como bem entendesse, desde que a poupasse de uma nova dor.

Fiquei chocado, mas entendi aflição e apenas me calei. Até minha solidariedade a machucava naquele momento. Tão ferida estava, que não conseguia distinguir compaixão de comiseração. 


E foi no meio dessa angústia que brigamos muito com Deus. Cada um de seu jeito, mas brigamos. Queria apenas entender as razões de tanta dor, na ilusão de que isso pudesse amenizar o sofrimento. Mas nenhuma resposta, nenhum sinal. O Absoluto continuava ali, impassível, mudo.

Feita a curetagem, Dr. Décio foi taxativo: nada de sexo por quarenta dias, tempo necessário para a recuperação do útero. Mas no meio dessa tormenta e de outras que se sucederam naqueles dias, acabamos esquecendo da recomendação. 


Resultado: nova gravidez e uma reprimenda do dr. Décio que temia por um novo aborto, considerando que o útero ainda não estava totalmente recuperado para acolher o embrião. Novamente a incerteza, a angústia, o medo se apossaram de nossas vidas. E foram esses ingredientes que rechearam nosso Natal naquele ano, em Penápolis. Família reunida, muitos pratos apetitosos, confraternização… Mas o pensamento teimava em voltar para o enorme ponto de interrogação que representava aquele feto que a Marilda trazia em seu ventre.

Voltamos para casa no início de janeiro e com o coração na mão, fomos fazer o ultrassom pedido pelo dr. Décio. O gel sobre a barriga, o aparelho começa a deslizar e as imagens vão se sucedendo no monitor. Não foram gravadas em DVD porque ainda não existia nem em VHS porque não levamos. Por puro medo. Mas estão gravadas até hoje na memória. 


Todos riem quando digo isso, mas juro que vi, no auge da emoção, um minúsculo serzinho acenando para mim com a mãozinha ainda mais minúscula. E nesse momento sublime cresceu dentro de mim a convicção de que finalmente o projeto de Deus para nossa vida estava se realizando. E de fato se realizou meses depois com a chegada do Francisco, nosso primogênito.

(Publicado originalmente no Facebook em 02/11/12)

domingo, 19 de junho de 2016

Te amaremos sempre!

"Meu bem, acho que está na hora!" 

A voz agoniada e dolorida da Marilda Martins, vindo do quarto me chamou à realidade. No quintal, enquanto amarrava com arame recozido as armações de ferro estrivado, estava absorto em sonhos e pensamentos. Pensava nas vigas e colunas de concreto que resultariam daquelas gaiolas de ferro, sonhava com as paredes da casa subindo... E sonhava com o bebê que estava para chegar, que viria para alegrar ainda mais nossas vidas. 

Parei na hora o trabalho e liguei para meu irmão Camilo, pedindo que nos levasse para a maternidade. O trajeto até o hospital Samam, em Americana, foi recheado de uma alegre expectativa. O Camilo nos deixou no hospital e ficou de voltar mais tarde. 

Como as contrações ficavam cada vez mais frequentes e fortes, a enfermeira deu jeito de apressar o atendimento. Entramos no consultório e fomos recebidos pela saudação costumeira do dr. Décio: "Oi, Deolinda!" 

Após um rápido exame, o médico pediu à enfermeira que conduzisse a Marilda até a sala de parto. Levantei-me para também deixar o consultório, mas dr. Décio, indicando a cadeira, ordenou: "Sente-se um pouco". E com a objetividade que sempre lhe foi peculiar sentenciou: "Queira Deus que eu esteja enganado, mas acho que o bebê está em óbito". 

Fiquei chocado. Apenas balancei a cabeça, em negativa, quando ele me questionou se a Marilda desconfiava de algo. Nem sei como levantei-me daquela cadeira e subi as escadas até o terceiro andar. A cabeça girava a mil quilômetros por hora. Só então entendi o desespero do dr. Décio tentando sem sucesso ouvir os batimentos cardíacos do bebê e cobrando da enfermeira a troca das pilhas do aparelho. 

Um enorme vazio se apossou de todo o meu ser, o olhar perdido. E a espera angustiante por uma notícia, nutrindo uma enorme esperança de que uma porta se abrisse e o dr. Décio aparecesse com um bebê chorando em seu colo. Mas nada! Só olhares de piedade das enfermeiras e atendentes. 

Não sei quanto tempo transcorreu, mas para mim foi uma eternidade. Quando, finalmente, uma porta se abriu, o dr. Décio saiu. Estava sereno como sempre. Ao ver-me, perguntou se alguém já tinha dado alguma informação. Respondi que não e ele, sem rodeios, deu a notícia: "Era um menino. Já devia estar em óbito há alguns dias. A Deolinda está bem e você já pode vê-la". 

O chão sumiu sob meus pés. O desespero apossou-se de mim. Nesse momento entraram pelo corredor meus irmãos Camilo e Joaquim. Chegavam alegres pelo nascimento de mais um sobrinho sem sequer imaginar que era um natimorto. 

Entrei no quarto e encontrei a Marilda com olhar vago, distante... No abraço do reencontro apenas choramos copiosamente. Meu irmão Joaquim foi quem me trouxe à realidade desta vez: "Precisamos providenciar o funeral". 

Dividido, sai com o Joaquim e fomos à Funerária Bom Pastor, que ficava na rua Tamoio, próximo ao jornal O Liberal. Após preencher vários papéis, o funcionário levou-nos a uma sala para escolher o caixãozinho. Desabei de novo. Passei longos meses imaginando o momento de sair da maternidade para comprar uma roupinha para meu bebê, pois não sabíamos até então se seria menino ou menina. E agora estava ali, comprando não uma roupa, mas uma urna funerária. 

Pedi a meu irmão que resolvesse a situação e saí, pra chorar, uma dor incalculável corroendo meu coração. Dali retornei ao hospital Samam para ficar com a Marilda. Foi, talvez, a pior noite da nossa vida. 

Exatamente hoje ele faria 21 anos. Só vi seu rostinho por alguns minutos, antes de ser enterrado, mas a imagem continua muito viva em minha mente, os lábios rosados, o cabelinho liso... Como também continua viva a lembrança de meu pai me esperando no portão da Matriz Nossa Ssenhora Dores, onde acontecia o velório, os olhos marejados de lágrimas. Não disse nenhuma palavra, apenas um abraço forte que revelou toda a ternura e a enorme compaixão paternal. 

"Te amaremos sempre", é a inscrição que colocamos sobre a sepultura de nosso bebê natimorto, uma frase simples, que saiu de nossos corações naquele momento de dor, de comoção até, mas que a cada dia revela-se profunda, cheia de sentido, verdade irrefutável até o último dia de nossas vidas. Te amaremos sempre, anjinho querido.

(Publicado originalmente no Facebook em 17/10/12)

Um amigo especial

Nick Prince
Bobi. É só o que me lembro dele. Não me lembro da cor, do tamanho nem da raça. Só o nome, Bobi. 

E me lembro da manhã em que ele foi atropelado por um caminhão na estrada do bairro Lagoa da Mata, onde morávamos. Eu devia ter quatro ou cinco anos. 

E me lembro que senti muita raiva, talvez até um ódio infantil, daquele motorista que matou meu cachorrinho. Chorando compulsivamente, eu cutucava seu corpo inerte com uma pequena vara, querendo que ele se levantasse e voltasse a correr e brincar. Foi minha primeira grande perda. 

Para tentar compensá-la vieram o Leão e o Feroz. O Leão já veio grande, de presente de minha tia Nena. Era grande e gordo, cotó, mas extremamente dócil com todos de casa. Parceiro das brincadeiras. O Feroz ganhou merecidamente o nome porque era muito bravo. Os dois formaram uma dupla muito especial. Amigos, parceiros. 

Nos acompanharam por muitos anos enquanto moramos no sítio. Quando mudamos para a cidade não se adaptaram ao novo estilo de vida e logo se foram. 

Cresci, fiquei adolescente, jovem, adulto. E também cresceu dentro de mim a convicção de não possuir animais. De início era apenas uma tentativa de evitar a dor de novas perdas. Com o tempo aprendi, especialmente com São Francisco de Assis, que animais não foram criados para serem possuídos. 

O pobrezinho de Assis tinha predileção por todas as formas de vida, a ponto de retirar os insetos e os vermezinhos do caminho para que não fossem esmagados por algum viajante distraído. Amor à vida, independente de sua forma. 

Mas ainda chegamos a ter uma cadelinha vira-poodle, a Fofa, presente dado à Juliana Lima Lacerda quando fez três aninhos. Inteligente, fiel, obediente, conviveu conosco por longos 14 anos. Morreu velhinha, deitada na nossa varanda, olhando para dentro de casa. Outra perda e a convicção mais forte de que os animais são criados para a liberdade. 

Mais recentemente, quando me converti ao vegetarianismo, aprendi a ver os animais como parceiros de nossa existência, sujeitos portadores de direitos como nós, criaturas nem mais nem menos importantes que os humanos. 

É essa convicção que me levou a combater o assassinato de animais para transformá-los em alimentos. Não pode gerar vida nem saúde o alimento fruto de uma violência e de um assassinato. Foi essa mesma convicção que me levou a combater a escravização dos animais, seja para usá-los como alimento, seja para servirem de instrumentos de nossa diversão e lazer. 

Essa mesma convicção me levou a opor-me à ideia de aceitar um filhotinho oferecido de presente por uma colega de trabalho da Marilda Martins. Escravidão, jamais! Mas fui voto vencido e o Nick veio para nossa casa. Com toda a bela feiura de um bebê yorkshire. 

Era um pirralho atrevido. Vivia atormentando a Tatá, nossa tartaruga, com seu latido estridente e ameaçando morder suas patas e cabeça. Acho que se divertia em ver a tartaruga recolher-se rapidamente no seu casco. Com o tempo se acostumou e parou de importunar a Tatá. Ou então entendeu minhas advertências de que a tartaruga era mais velha de casa e merecia ser respeitada. 

Logo conquistou o carinho e o respeito de todos de casa. E dos amigos da casa. Tornou-se meu amiguinho, parceiro de brincadeiras diárias. Todas as tardes me esperava no portão, segurando entre os dentes seu brinquedo preferido, um Pluto de pelúcia todo rasgado pelos dentinhos afiados. Mal me via e soltava o brinquedo, numa provocação matreira, esperando que eu fizesse menção de pegá-lo. Aí agarrava de novo o bichinho e saía correndo, saltitante de alegria. 

Conseguiu me mostrar que, mesmo “aprisionado” em nossa casa, não queria e não se sentia nosso escravo. Queria e se sentia nosso amigo. 

Hoje, quando cheguei do trabalho, não o encontrei me esperando no portão. Vizinhos e amigos velavam seu corpinho frágil e ensanguentado, coberto por um jornal. Não o toquei com uma varinha tentando reanimá-lo, como fiz há 43 anos com o Bobi. A maturidade mata as ilusões infantis. Não quis vê-lo morto nem saber detalhes do seu atropelamento. Apenas senti no fundo da alma a perda de meu amiguinho. 

Agora, enquanto escrevo, sinto a falta de seu longo pelo se enroscando em meus pés, sua língua me lambendo carinhosamente, seu corpo se contorcendo no chão até encostar nos meus pés, à espera de um cafuné, seus dentinhos dando mordidelas nas pontas de meus dedos, chamando para a brincadeira. 

Adeus, Nick! Ou, quem sabe, se os animais também tiverem seu cantinho no céu, até qualquer dia desses, quando nos encontraremos todos: Bobi, Leão, Feroz, Fofa, Nick e eu. E juntos faremos da verde e florida relva (é assim que imagino o céu) nosso campo de eternas brincadeiras.

(Publicado originalmente no Facebook em 06/09/2012)

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Queira Deus...

Dr. Décio com nosso primogênito
"Queira Deus que eu esteja errado. Mas..." 

Assim o dr. Décio começou seu prognóstico, sinalizando que algo de muito grave poderia estar acontecendo. Há vários dias a Marilda vinha se queixando de dores no baixo ventre. O médico do Hospital de Nova Odessa suspeitara de infecção na bexiga e pedira exames. Os dias foram passando e as dores piorando, até que um dia a Marilda "travou" na sala de aula e chegou se arrastando em casa. 

Passamos pelo Hospital, pegamos os exames e seguimos para Americana. No Hospital Samam, o clínico geral analisou os exames e garantiu que não havia qualquer infecção. Encaminhou para o ginecologista, com urgência. A Marilda preferia passar por uma médica, mas a atendente informou que apenas o dr. Décio estava atendendo naquela tarde. 

Ele nos recebeu com a sua calma e serenidade que se revelariam habituais, ao menos com suas pacientes. Examinou, procedeu uma pequena anamnese e, então, prognosticou: "Deus queira que eu esteja errado, mas tudo indica que é uma gravidez ectópica". 

Nem sabíamos o que era ectópica. Mas ele explicou, sempre sereno, que era uma gravidez onde o embrião se implanta nas trompas e aí se desenvolve o feto. Com algumas semanas, sem o espaço e a elasticidade do útero, o feto comprime as paredes da trompa e causa fortes cólicas e sagramento. 

Não havia tempo a perder. Fomos direto para o Hospital Municipal de Americana, onde a Marilda ficou internada, em observação e realizando exames complementares para confirmar ou não as suspeitas do jovem médico. Ficou chorando, cheia de medo e insegurança, quando fui para casa buscar roupas para passarmos a noite no hospital. 

Na manhã seguinte o exame confirmou: gravidez! Uma ambulância a levou ao Hospital São Francisco para uma ultrassonografia que referendou o prognóstico do dr. Décio. A gravidez era realmente ectópica, na trompa direita. 

O risco era iminente. Se houvesse o rompimento da trompa resultaria numa hemorragia interna que poderia ser fatal. Naquele mesmo dia a Marilda passou por cirurgia. Perdemos aquele feto, a Marilda perdeu a trompa e teve reduzida em 50% a chance de uma nova gravidez. A intervenção cirúrgica, porém, foi perfeita.

Passamos a nutrir uma admiração e um respeito muito grandes pelo dr. Décio, não só pela sua competência técnica, mas sobretudo pelo atendimento humano. O tempo nos revelou que essa impressão inicial era acertada. 

Ouvi do dr. Décio outras duas vezes a frase "Queira Deus que eu esteja errado", seguida de prognósticos nada favoráveis. Nas duas ocasiões estava certo. Nas duas vezes reforçou em nós a confiança em sua competência profissional, intervindo de maneira rápida, firme e eficiente.

(Publicado originalmente no Facebook em 20/06/2012)

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Protagonistas e coadjuvantes

Odorico Paraguaçu, Dirceu Borboleta e Zeca Diabo
"O Bem Amado" foi a primeira telenovela produzida em cores na TV brasileira. Foi exibida em 1973 pela Globo, no horário da novela das dez. 

O comunista Dias Gomes, autor do folhetim, deu trabalho aos censores do regime militar, que acabaram tesourando 37 dos 178 capítulos da novela.

Nessa época ainda morava no sítio onde nem energia elétrica existia. Só fui assistir "O Bem Amado" quatro anos depois, já morando na cidade, quando a novela foi reapresentada no mesmo horário das dez. 

Na verdade não assisti. Devido às cenas "picantes" do prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu, com as irmãs cajazeiras, era considerada imprópria para meus 12 anos de idade. Então eu tinha que me contentar em espiar pela fresta da porta do quarto, sem que meus pais percebessem.

Odorico Paraguaçu foi interpretado de forma espetacular por Paulo Gracindo. Com o personagem, um prefeito corrupto e populista, Dias Gomes satirizava o coronelismo que sempre existiu na política brasileira (e ainda existe) e ao mesmo tempo as arbitrariedades da ditadura militar.

Demagogo e dono de uma oratória que se pretendia rebuscada, cheia de neologismos, Odorico virou prefeito com a promessa de construção do cemitério da cidade. Lembrei dele dias atrás quando, numa entrevista ao vivo no Bom Dia RJ, um estudante lascou um "primeiramente, Fora Temer". É que nos seus discursos, Odorico sempre proferia um primeiramente, seguido de um segundamente e até de um terceiramente.

Mas meu ídolo na novela não era o coronel Odorico. Era Zeca Diabo, interpretado pelo grande Lima Duarte, devoto do “Santo Padim Pade Ciço Romão Batista”. Pistoleiro temido pelo povo de Sucupira, foi contratado pelo prefeito que estava com dificuldades para inaugurar o cemitério.

Algum tempo atrás vi uma entrevista com o Lima Duarte onde ele contou que o seu papel na novela era só uma ponta, devia durar poucos capítulos. Mas sua interpretação agradou em cheio ao público e se tornou central na trama. Lima Duarte, certamente, é dos atores destinados ao protagonismo.

No grande espetáculo da vida, 
há atores que foram talhados para serem protagonistas. Se lhe dão um papel secundário não se queixam nem se revoltam e, como Lima Duarte, logo assumem o protagonismo na trama. 

Muitas vezes nem estão interpretando, estão incógnitos na platéia, só assistindo. E o diretor da peça logo percebe, convida-os para o palco e então, mesmo sem ensaio, brilham. Porque foram talhados para o protagonismo.

E há atores que nunca passarão de coadjuvantes. E se assumirem com dedicação esse papel contribuirão para que o espetáculo seja perfeito. Há coadjuvantes, porém, que lançam mão de artifícios para usurpar o papel principal. Fazem feio e transformam o espetáculo num fiasco. 

Qual o seu papel nesse espetáculo?

E tudo o mais vos será acrescentado

Início de um sonho
Quem casa quer casa. Esse ditado popular esteve presente no nosso (meu e da Marilda) horizonte desde o primeiro dia do nosso namoro.

Fizemos muitos planos para ter nossa casinha, chegamos a cogitar a antecipação do casamento civil para conseguir uma inscrição num plano habitacional da Cohab. 

Mas chegou o dia de nosso casamento e não tínhamos ainda nosso tão sonhado cantinho e tivemos que morar um tempo com meus pais. Tempo difícil, mas também de aprendizado, de exercitação da paciência, da tolerância, do respeito às diferenças. 

Mas já em 1987 conseguimos comprar nosso terreno. Estávamos no auge da "estabilidade" econômica trazida pelo fracassado Plano Cruzado, do governo Sarney, quando surgiu a oportunidade. Animados pela "derrubada" da inflação, a Imobiliária Boldrini e loteador do Jardim São Jorge, James Leroy Waughan, decidiram vender os terrenos que restavam no bairro. 

Vi a propaganda no jornal O Liberal, onde trabalhava, e corri à imobiliária. Verifiquei no mapa os terrenos que ainda estavam disponíveis e fui junto com a Marilda conhecer o local. Foi uma decepção enorme. 

"É nesse lugar feio que vamos morar?" Foi a pergunta que a Marilda me fez. Ponderei que poderíamos vender o terreno depois e comprar em outro local, que não podíamos perder a oportunidade. 

Afinal, não dispúnhamos de dinheiro suficiente para adquirir um terreno e esse era parcelado em 60 meses. Eram 30 mil cruzados de entrada, 10 prestações de 5 mil, 10 mil, 15 mil, 20 mil, 25 mil e 30 mil. Fiz e refiz os cálculos e decidimos arriscar. Pagaríamos ao final dos 60 meses 1 milhão e 50 mil cruzados por um terreno que valia 200 mil à vista. 

Meu pai achou um absurdo, mas não tínhamos mesmo outra saída. A dificuldade maior seria quando a prestação mudasse de 5 para 10 mil, o que representaria 100% de aumento. Mas apostei na volta da inflação e deu certo. Ela voltou mesmo, atingindo a casa dos 80% ao mês. Os salários eram reajustados mensalmente pra tentar inutilmente acompanhar a inflação galopante. 

Mas se por um lado os salários perdiam a corrida contra a inflação, o valor das prestações do terreno logo se tornou irrisório. Veio o Plano Bresser, ainda no governo Sarney, e com ele a tablita, que aplicava uma deflação sobre os contratos com valores pré-fixados. Cada mês o valor diminuía e acabei quitando mais de 30 prestações de uma só vez. 

A maior dificuldade, na verdade, nem ocorreu quando a prestação mudou de 5 para 10 mil. Foi, sim, na primeira prestação. Para dar a entrada tínhamos juntado todas as economias, sacamos PIS, Fundo de Garantia e chegamos aos 30 mil. Mas no dia que venceu a primeira prestação não tínhamos o valor para pagar. 

Meu salário era de pouco mais de 6 mil no O Liberal e não tinha sobrado nada. Cheguei no jornal meio acabrunhado naquele dia. Sentei-me num banco que havia na recepção, sem coragem de subir as escadarias para a redação. E fiquei ali alguns minutos pensando em como resolver o problema. O jeito seria pagar as prestações sempre com um mês de atraso. 

Absorto em meus pensamentos vi quando o Ari, gerente do jornal, se aproximou e me chamou à sua sala. Entrei, sentei-me à sua frente, ele abriu a gaveta, tirou um maço de notas e me entregou explicando: "o jornal teve um bom desempenho neste mês e o Jessyr (Bianco) decidiu dar um abono aos funcionários". 

Exultante de alegria agradeci e saí da sala. Ao contar o dinheiro a alegria foi maior ainda: 5 mil cruzados, o valor exato da prestação. Me veio à mente naquele momento a recomendação do Evangelho: "buscai primeiro o Reino de Deus e tudo o mais vos será dado por acréscimo".
(Publicado originalmente no Facebook em 15/05/2012)

No meio do povo

Frei Carlos com noviços capuchinhos, no México
Amizade não se explica. Ela simplesmente existe. Verdade também inexplicável essa mensagem que recebi hoje da minha amiga Mariangela Sampaio

No mesmo final de semana em que me casei, meu amigo frei Carlos iniciava seu noviciado no Convento Sagrado Coração de Jesus, em Piracicaba. Um ano de experiência intensa de iniciação à vida religiosa na ordem dos frades menores. 

Um ano depois, dia 10 de janeiro de 1988, uma semana antes de meu primeiro aniversário de casamento, frei Carlos concluía seu noviciado e fazia seus votos temporários de pobreza, obediência e castidade. 

Chegamos ao Convento naquele domingo de manhã quando a missa já tinha começado. Os novos freis já estavam todos no presbitério ostentando o singelo hábito marrom. A Marilda nunca tinha visto o Carlos, mas quando bateu o olho naqueles jovens que rodeavam o altar não teve dúvidas, apontou-o e entre lágrimas de emoção me disse: é ele! 

Nascia ali uma amizade inexplicável. Uma amizade que parecia (e ainda parece) existir desde sempre. Nossos encontros se intensificaram. Íamos sempre a Nova Veneza e depois a Piracicaba e o Carlos passava sempre em nossa casa. Estreitamos os laços de amizade e de fraternidade. 

Em 12 de outubro de 1991, na comemoração da padroeira do Brasil, frei Carlos fez sua profissão perpétua numa celebração recheada de muita emoção. No interrogatório das intenções do novo frade, o provincial da época, frei Ismael Martignago, deixando de lado o “script”, dirigia perguntas capciosas que induziam a uma (con)fusão da vida religiosa com militância político-social. Iluminado pelo Espírito, Carlos respondia a cada questão de forma simples e direta e… cantando. Inesquecível. 

Jovem e jovial, aos 29 anos, já demonstrava uma fé madura comprometida, uma convicção pura e contagiante de sua vocação, uma paixão louca pelo carisma franciscano e, portanto, evangélico.

Frei Carlos foi ordenado padre, trabalhou na promoção vocacional dos freis capuchinhos e abraçou as missões populares, um jeito novo de evangelizar no mundo de hoje, “no meio do povo e com o povo e a partir de sua realidade, de seus anseios e clamores”. A missão o conduziu a viver o carisma franciscano no México, onde aparece nesta foto entre noviços capuchinhos. 

Entre uma missão e outra sempre reservou um tempo para passar por Nova Odessa ou Penápolis, para um bate-papo, um abraço, amenizar a saudade. E para celebrar o Batismo de nossos três filhos: Francisco, Pedro (do qual é padrinho) e João Carlos

Amizade é assim: apenas existe e não se explica.

(Publicado originalmente no Facebook em 03/05/2012)

terça-feira, 14 de junho de 2016

Verbum

No Oiapoque ou no Chuí, te amo sempre.
Do latim verbum, a expressão verbo significa PALAVRA. Na nossa gramática é a classe de palavras que encerram uma AÇÃO. 

Geralmente podem ser conjugados em três tempos (presente, pretérito e futuro) e três modos (indicativo, subjuntivo e imperativo), além das formas nominais (particípio, gerúndio e infinitivo).

É, sem sobra de dúvidas, a classe de palavras mais rica e complexa na Língua Portuguesa.

Mas toda regra tem exceção. AMAR é um verbo especial, sui generis. Não se permite conjugar apenas no campo das palavras. Só é possível conjugá-lo concretamente. Não expressa uma ação, é a própria AÇÃO. Não comporta outros tempos além do PRESENTE, tampouco o modo subjuntivo. No imperativo, então, nem pensar.

E pra dar um nó ainda maior na gramática, AMAR é um verbo que confunde-se facilmente com outros que, porém, não encerram sua radicalidade: dar, partilhar, doar, optar, priorizar, respeitar, aceitar, relevar, perdoar, superar(-se), abster(-se), anular(-se)...

Venho tentando conjugá-lo. Algumas vezes consigo, outras não.
Hoje, completando exatos 30 anos de vida partilhada contigo, minha Linda, reitero a declaração cotidiana, várias vezes repetida ao longo de cada dia: TE AMO. 

Mais do que uma verdade absoluta, essa declaração encerra o meu desejo de amá-la na concretude de nossa vida. E a tentativa de corresponder ao seu AMOR, que a cada diz se faz novo e surpreendente. Com meu AMOR, minha eterna GRATIDÃO.

(Publicado originalmente no Facebook em 14/06/2016)

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Toninho e Doniseti


Dupla inesquecível para Nova Odessa e região. Dois grandes talentos que se uniram para fazer algo que gostavam muito: cantar e levar alegria às pessoas em seus shows e festas-baile. 

Com persistência, garra, fé, buscavam sempre se aprimorar e, com a ajuda de muitos amigos, batalharam pelo sonho de gravar um disco. Gravaram. Mas o trágico destino impediu o Doni de ver o resultado desse sonho. 

Em viagem de férias, em novembro de 1995, foi tragado pelas ondas na praia das Pitangueiras, no Guarujá. Tinha acabado de chegar no trabalho, no Sindicato da Construção Civil de Campinas, quando a Marilda me ligou avisando da tragédia. Atônito, com um grande vazio no peito, voltei para Nova Odessa no mesmo instante.

Junto com centenas de fãs e amigos, passamos aquela tarde no salão da igreja Nossa Senhora das Dores. A esperança era de que ele entrasse caminhando pelo corredor central, violão em punho, com seu largo e característico sorriso, e iniciasse mais um de seus shows.

O mesmo largo sorriso que trouxe estampado no rosto no dia em que saiu do estúdio e passou em minha casa, na hora do almoço, feliz da vida, com uma fita cassete na mão, para mostrar a primeira prova do disco que estava sendo produzido. 

Essa irracional esperança, porém, acabou quando seu corpo entrou no salão, inerte dentro de uma urna funerária. Sua morte prematura deixou a cidade consternada. 

Para além do talento musical, Doni representou muito para mim pela pessoa humana extraordinária que foi, amigo, companheiro de todas as horas, sonhador dos mesmos sonhos. 

Militamos juntos no Partido dos Trabalhadores, pelo qual elegeu-se vereador em 1992. E juntos planejamos e realizamos algumas ações do mandato, como o Natal sem Fome, edição local da campanha nacional proposta pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e sua ONG Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

A campanha culminou com um show da dupla Toninho e Doniseti no Campo do Progresso, onde arrecadamos mais de duas toneladas de alimentos que foram distribuídos à parcela da população mais vulnerável da cidade. 

Muita gente ajudou naquele dia. Mas o trabalho anterior, de preparação, foi quase solitário. Saíamos todas as manhãs, ele pilotando e eu na garupa de uma moto emprestada pelo Beto Freire, visitando escolas, indústrias, divulgando e pedindo apoio.

E à noite, reuniões intermináveis para conciliar interesses e expectativas das várias instituições que atuavam na assistência às famílias empobrecidas pela recessão, o desemprego e o arrocho salarial decorrentes da política econômica dos governos Collor de Melo e Itamar Franco/FHC.

Essa e outras ações do mandato, aliadas à sua enorme popularidade de artista, o credenciavam naquele momento para concorrer à Prefeitura em 1996, com grandes chances de derrotar os caciques da política local. A cada vez que eu lhe dizia isso, entretanto, ele sorria incrédulo.

A falta de apoio partidário e a inocente ingenuidade política o fizeram presa fácil do então presidente da Câmara, que pretendia disputar a Prefeitura e, não o querendo como adversário, trabalhou para tê-lo como parceiro de chapa. Assediado por vários meses, Doni só sacramentou a decisão de trocar o PT pelo PSDB depois que lhe garanti que isso não afetaria nossa amizade.

Quis o destino, ou a Providência Divina, que ele nem chegasse a esquentar o ninho tucano. A trágica morte preservou sua integridade ética e moral, sua pureza política. E o eternizou por aquilo que de fato amava e realizava com a alma: a música.

Seriedade sem perder o bom humor

Cavaco e Justina
Na minha passagem pelo jornal O Liberal procurei abrir espaço para quem não tinha vez, conceder a fala a quem não tinha voz.

Como qualquer órgão de imprensa, O Liberal era porta-voz das elites de Americana e demais cidades da região. Quem não se alinhava com as idéias e interesses dessas elites ficava de fora das páginas do jornal. Não porque essa fosse uma orientação explícita da direção do jornal, mas tão somente pela visão elitista dos repórteres que ali trabalhavam. 

Quando cheguei à redação, logo me tornei o "canal" para a expressão de lideranças sindicais, populares e de partidos de esquerda. Uma dessas lideranças era o Osvaldo Padovan, então diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas e presidente do PT de Nova Odessa. 

Padovan passava sempre pelo jornal e deixava, numa caixinha de recados da recepção, um bilhete com informações sobre atividades do sindicato ou do partido. Quando eu voltava da rua, no final da tarde, pegava o bilhete e transformava em matéria. 

Essa prática, porém, começou a incomodar. O editor da época, um autêntico lacaio das elites, se apoderou de um desses bilhetes que o Padovan deixara pra mim e resolveu ele mesmo produzir a matéria. Começou seu texto afirmando que "o presidente do PT de Nova Odessa, Osvaldo Padovan, através de nota recheada de erros ortográficos e gramaticais..." E seguiu até o fim ironizando as "poucas letras" do meu amigo Padovan. 

Na noite seguinte fui procurado em casa pelo Cavaco. Ele trazia uma nota oficial do diretório do PT, repudiando a publicação. Na verdade o próprio Cavaco é quem redigira a nota. Embora sem grande escolaridade, Cavaco sempre foi dotado de uma inteligência e sagacidade extraordinárias. Um autodidata. E naquela nota conseguiu, em poucas palavras, pôr o editor sob seu chinelo. 

Começava lembrando a situação de exclusão social do país, que tira precocemente muitos filhos de trabalhadores dos bancos escolares. E acrescentava que Osvaldo Padovan era um desses muitos filhos de trabalhadores que muito cedo foi privado da escolaridade pela necessidade de trabalhar e ajudar no sustento da família, daí sua dificuldade com a escrita. 

Dizia, ainda, que a luta do PT era justamente para acabar com essa situação de exclusão que afeta milhões de brasileiros. Depois vinha a pá de cal sobre o orgulho mesquinho do editor: "nós, do PT, preferimos os erros gramaticais do que os desvios éticos e morais característicos das nossas elites e políticos profissionais". 

Quando o editor leu a nota, deixada sobre sua mesa pelo próprio Cavaco, ficou furioso. Levantou-se aos berros e dirigiu-se à minha mesa esbravejando e gritando impropérios. Imaginou que o texto fosse de minha autoria e insistia que eu estava trabalhando contra o jornal. Tentei argumentar, mas era inútil. Ele estava completamente transtornado. E sentenciou: não fale mais comigo! Com toda calma respondi: será um prazer! 

De fato não nos falamos mais. Trabalhei ainda por alguns meses no jornal e, nas reuniões de pauta, ele sequer dirigia o olhar para mim. Ao final da reunião afixava no mural da redação o que reservara da pauta para mim. Depois de alguns dias nem isso fazia mais. Ficava a meu critério garimpar notícias, produzir ou não as matérias. 

Isso foi me cansando e resolvi deixar O Liberal. Vários fatos e fatores contribuíram para que o clima ficasse insustentável, mas o Cavaco foi quem desencadeou o processo quando "nocauteou" o editor. 

Seu jeito irreverente de ser despertava reações furiosas em muitos militantes sindicais e partidários. Uma destacada integrante do PCdoB de Americana, hoje no PT, dizia irritada que o Cavaco não fazia política com seriedade. Ao que ele, sorrindo, respondia: "Faço política séria sim, mas com bom humor". Grande figura.

(Publicado originalmente no Facebook em 30/04/12)

De Txetxuiã a Jesus

Primeira edição da Paixão e Cristo, em Nova Odessa
"Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar". 

Lema da atividade pastoral de Dom Pedro Casáldaliga, foi seguido à risca nos 34 anos em que esteve à frente da Prelazia de São Félix do Araguaia. Com o risco da própria vida, Pedro defendeu incondicionalmente a vida dos indígenas e dos peões constantemente ameaçada pelos fazendeiros e seus jagunços na disputa pela posse da terra. 

Em “Paixão e Morte de Txetxuiã”, Casaldáliga faz uma analogia da paixão e morte dos povos indígenas à paixão e morte do próprio Cristo, ou Txetxuiã em tupi guarani. Foi exatamente esse texto de Dom Pedro, com adaptação de João Luis dos Santos, que escolhemos para participar do Festival Estudantil de Teatro de Penápolis, nos idos de 1983. 

Fui escolhido para representar o índio Txetxuiã, liderança da peãozada, que namorava Madalena, filha do velho Israel, e que acabou assassinado na sexta-feira da Paixão. No elenco, além de mim estavam a Rosana de Lima, a Leonila Aguiar Torrezan, o Osvaldo Silva, o Gilberto Barbiere. 

Foi minha primeira experiência no teatro. Inesquecível. Durante longos meses nos encontrávamos todas as tardes de sábado e domingo para ensaiar no anfiteatro do Santuário São Francisco de Assis, onde hoje estão instalados vários estabelecimentos comerciais. 

Voltei a representar 14 anos depois, em Nova Odessa. Por convite do amigo Geraldo Proença, interpretei Jesus Cristo nas três primeiras edições do espetáculo “Paixão de Cristo”. 

A foto retrata a apresentação de 1997 do grupo teatral que era dirigido pelo Laudemir Merlini e que revelou o talento de vários artistas amadores novaodessenses. Nesse elenco também estava o amigo Cicero Edno, ator e diretor teatral que conquistou toda a região de Nova Odessa com seu excepcional talento e vem se projetando no cenário artístico nacional. 

Foi uma experiência riquíssima. Representar na praça, sentir o calor de um público de quase 10 mil pessoas, a emoção das crianças que ficavam consternadas e até choravam diante da tortura infligida a Jesus pelos soldados romanos… Momentos especiais que jamais serão esquecidos. Nada comparável, porém, à sensação de pisar pela primeira vez no palco do Teatro Municipal Maria Tereza Alves Viana.

(Publicado originalmente no Facebook em 21/04/12)

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Coxinhas

Coxinhas, as originais: boa fama ameaçada pelos coxinhas
Já contei em outro causo que o trabalho foi uma constante na minha vida. Ainda criança, na roça, ajudava na colheita do café e do arroz, no plantio do alho e na alimentação dos animais. Na cidade, antes de enveredar pelo jornalismo e a carreira do Magistério, fui balconista de mercearia e loja de autopeças, garçom, sorveteiro, cobrador e vendedor de coxinhas.

Isso mesmo, coxinhas! De frango e de carne. Minha mãe preparava a massa e o recheio, moldava os salgados, fritava, acondicionava tudo numa cesta e eu saía pelas ruas de Penápolis oferecendo os apetitosos salgados. Gostava muito de coxinha, especialmente se feita com massa de mandioca. Com molho de pimenta, então, era irresistível. Deixei de apreciar o salgado quando fiz opção pela alimentação vegetariana.

O que eu nunca poderia imaginar é que, de repente, coxinha deixasse de significar um petisco tão popular para designar criaturas tão desprezíveis de nossos tempos. A gíria é recente e ninguém sabe explicar com precisão como o termo passou a caracterizar, de forma pejorativa, aquela moçada mimada pelo dinheiro fácil que, na minha adolescência era conhecida por “filhinhos de papai”, “mauricinhos” ou “playboys”.

Coxinha que se preza tem preocupação exacerbada com a aparência. Cabelo impecavelmente arrumado, camisa polo de marca, smartphone de última geração. A esse respeito, Aurélio Melo, professor de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie disse numa entrevista algum tempo atrás que estamos presenciando um novo paradigma na sociedade. Para os coxinhas pouco importa o ser ou o ter. O que vale mesmo é o parecer. Talvez por isso, ter dinheiro não seja um requisito essencial para ser coxinha. Basta ter a sensação de pertencimento a uma camada ou classe social, mesmo que nunca chegue de fato a pertencer.

Entretanto, na minha modesta opinião, o que melhor caracteriza um coxinha é seu ódio exacerbado ao PT e aos petistas (ou petralhas como eles preferem dizer), aos pobres, aos favelados (ainda que alguns coxinhas sejam pobres e morem em favelas), aos negros, aos beneficiários do Bolsa Família, aos cotistas das universidades públicas, aos gays, lésbicas, prostitutas, indígenas e tudo o mais que, na sua visão de mundo estreita, egocentrista e individualista, contrarie seus ideais de meritocracia e seja estímulo à vagabundice.

De uns tempos para cá tomaram as ruas travestidos de lutadores verde-amarelos contra a corrupção. Não qualquer corrupção, apenas aquela supostamente arquitetada e executada pelo PT e os petralhas. Nada a ver com o suborno ao guarda de transito, a carteirinha estudantil falsificada ou com aquele dinheiro que “papai” enviou ao exterior depois de sonegar impostos para fugir da crueldade fiscal dessa corja comunista-bolivariana-lulo-petista.

Os coxinhas estão em toda parte. Todo mundo tem um parente, um amigo, um colega de trabalho ou de estudo e um vizinho coxinha. Eu tenho vários. Em geral, eles ficam na deles e eu fico na minha. Não visito suas casas nem suas páginas nas redes sociais, não opino sobre suas opiniões. E assim fica tudo certo. Mas às vezes, tem algum que foge da regra. Aí o caldo entorna.

Foi o que aconteceu ontem. A pessoa me envia uma mensagem via facebook destilando seu odioso preconceito, fazendo apologia à violência policial contra manifestantes em luta pela democracia e por moradia, defendendo o latifúndio e a propriedade privada como direitos naturais e meritocráticos, atacando os princípios democráticos ainda inscritos na Constituição Federal e, de quebra, me ofendendo.

Já respondi ao sujeito que não pedi sua opinião e que fique com sua visão estreita de vida, defendendo seus ideais fascistas, golpistas e elitistas (mesmo sem qualquer chance de integrar a elite algum dia). Podia ficar só nisso. Mas não estou resistindo à tentação de ironizar duas das pérolas vomitadas por esse coxinha que, por obra do acaso, é um primo meu. Vamos lá.

“Esse bolsa família pode ser chamado de bolsa vagabundo. Uma vez o vagabundo recebendo a grana de graça não vai querer trabalhar”.

Fiquei em dúvida aqui. Será que o coxinha se baseou em algum estudo sociológico, uma pesquisa acadêmica para tal afirmação, ou considerou apenas a experiência de vida de quem, aos 51 anos de idade, nunca soube o que é trabalho, carteira assinada, cartão de ponto?

“Também sou contra a reforma agrária. Todos tem que trabalhar para ter aquilo o que almeja. Seja a propriedade alheia herdada ou comprada”.

Coitado! Com uma formação cultural de Almanaque Fontoura certamente nunca ouviu falar nem sabe o significado de grilagem de terras. Ou talvez imagine que seja apenas a aquisição (ou herança) de propriedade pelos grileiros, ou seja, os integrantes da família Grilo.

Como não sou da família Grilo e sim da família Martins, não herdei nenhuma “propriedade alheia”, nem aqui nem em Trás os Montes – Portugal, de onde vieram meus avós paternos. Meu pai trabalhou duro a vida toda, empenhou suor e sangue, comprometeu a saúde, mas não conseguiu acumular bens nem propriedades. Talvez porque não tivesse conhecimento dessa tal meritocracia.

Não me queixo de ser um deserdado material. Herdei de meu pai bens mais preciosos que terras ou propriedades. Honestidade moral e intelectual foi uma dessas heranças. Solidariedade com os deserdados da sociedade foi outra. Não digo o mesmo da fome e sede de justiça. Essas são conquistas minhas. A fome e a sede. Já a justiça, continua no campo das utopias.


Em tempo, recado final ao primo coxinha: se minha existência e minhas convicções te incomodam tanto, não se apoquente não, basta me excluir/bloquear da lista de amigos do facebook. Não ficarei nem um pouco incomodado nem triste com isso. Pode crer.