
Mas a fé nunca tornou fáceis as coisas para Abraão. Já idoso, com a esposa Sara também velha e estéril, Abraão por várias vezes duvidou da promessa de Deus. Nem por isso deixou de ser o homem da fé.
Por sugestão de Sara, Abraão também tentou apressar a realização da promessa, usando o subterfúgio de procriar com uma escrava de Sara. Agar deu-lhe um filho, Ismael, que legalmente era seu herdeiro legítimo. Mas esse não era o caminho do Absoluto. Nem o seu tempo. Quando todas as esperanças já tinham acabado, eis que Sara concebeu e deu à luz Isaac, o herdeiro prometido.
A história de Abraão me veio à cabeça assim que ouvi o desabafo da Marilda naqueles primeiros dias de novembro de 1995. “Olha aqui, João Martins, você pode ter um filho com quem você quiser, porque eu desisti. Chega!”
O desespero não era sem razão. Uma gravidez tubária, em 1988, já lhe custara uma trompa, reduzindo pela metade a possibilidade de uma nova concepção. Depois a decepção de um filho natimorto, em 1991. Agora, quando a esperança tinha renascido após um tratamento natural que eliminou um cisto ovariano de grandes proporções, vem uma gestação anembrionária.
Nunca tínhamos ouvido falar disso, mas o médico, o mesmo dr. Décio Feola, explicou direitinho depois de repetir exames e ultrassons. O óvulo foi fecundado, implantou-se no útero, mas o embrião não se desenvolveu. É o chamado ovo cego. Só restava a alternativa de mais uma curetagem que, se não me falha a memória, foi feita no dia 7 de novembro.
A Marilda, tanto quanto eu, sonhava com uma descendência. Já tínhamos a Juliana, que amei desde a concepção e adotei como filha tão logo perdeu o pai. Mas desejávamos um filho que fosse fruto do nosso grande amor.
Ao longo daqueles oito anos de vida comum e de tantas tentativas frustradas, de tantas buscas, chegamos a pensar na adoção e até numa fertilização artificial. Mas assim como aconteceu com Abraão, algo nos dizia que esse não era o projeto de Deus para nossas vidas.
Veio o tratamento natural e a chama reacendeu em nossos corações, uma alegria incontida explodindo no corpo e na alma. Mas bastou o primeiro ultrassom para tudo isso ser substituído pela angústia, a incerteza, a tristeza. E, então, em seu desespero, assim como fez Sara, Marilda me sugere procurar minha descendência como bem entendesse, desde que a poupasse de uma nova dor.
Fiquei chocado, mas entendi aflição e apenas me calei. Até minha solidariedade a machucava naquele momento. Tão ferida estava, que não conseguia distinguir compaixão de comiseração.
E foi no meio dessa angústia que brigamos muito com Deus. Cada um de seu jeito, mas brigamos. Queria apenas entender as razões de tanta dor, na ilusão de que isso pudesse amenizar o sofrimento. Mas nenhuma resposta, nenhum sinal. O Absoluto continuava ali, impassível, mudo.
Feita a curetagem, Dr. Décio foi taxativo: nada de sexo por quarenta dias, tempo necessário para a recuperação do útero. Mas no meio dessa tormenta e de outras que se sucederam naqueles dias, acabamos esquecendo da recomendação.
Resultado: nova gravidez e uma reprimenda do dr. Décio que temia por um novo aborto, considerando que o útero ainda não estava totalmente recuperado para acolher o embrião. Novamente a incerteza, a angústia, o medo se apossaram de nossas vidas. E foram esses ingredientes que rechearam nosso Natal naquele ano, em Penápolis. Família reunida, muitos pratos apetitosos, confraternização… Mas o pensamento teimava em voltar para o enorme ponto de interrogação que representava aquele feto que a Marilda trazia em seu ventre.
Voltamos para casa no início de janeiro e com o coração na mão, fomos fazer o ultrassom pedido pelo dr. Décio. O gel sobre a barriga, o aparelho começa a deslizar e as imagens vão se sucedendo no monitor. Não foram gravadas em DVD porque ainda não existia nem em VHS porque não levamos. Por puro medo. Mas estão gravadas até hoje na memória.
Todos riem quando digo isso, mas juro que vi, no auge da emoção, um minúsculo serzinho acenando para mim com a mãozinha ainda mais minúscula. E nesse momento sublime cresceu dentro de mim a convicção de que finalmente o projeto de Deus para nossa vida estava se realizando. E de fato se realizou meses depois com a chegada do Francisco, nosso primogênito.
(Publicado originalmente no Facebook em 02/11/12)