A voz agoniada e dolorida da Marilda Martins, vindo do quarto me chamou à realidade. No quintal, enquanto amarrava com arame recozido as armações de ferro estrivado, estava absorto em sonhos e pensamentos. Pensava nas vigas e colunas de concreto que resultariam daquelas gaiolas de ferro, sonhava com as paredes da casa subindo... E sonhava com o bebê que estava para chegar, que viria para alegrar ainda mais nossas vidas.
Parei na hora o trabalho e liguei para meu irmão Camilo, pedindo que nos levasse para a maternidade. O trajeto até o hospital Samam, em Americana, foi recheado de uma alegre expectativa. O Camilo nos deixou no hospital e ficou de voltar mais tarde.
Como as contrações ficavam cada vez mais frequentes e fortes, a enfermeira deu jeito de apressar o atendimento. Entramos no consultório e fomos recebidos pela saudação costumeira do dr. Décio: "Oi, Deolinda!"
Após um rápido exame, o médico pediu à enfermeira que conduzisse a Marilda até a sala de parto. Levantei-me para também deixar o consultório, mas dr. Décio, indicando a cadeira, ordenou: "Sente-se um pouco". E com a objetividade que sempre lhe foi peculiar sentenciou: "Queira Deus que eu esteja enganado, mas acho que o bebê está em óbito".
Fiquei chocado. Apenas balancei a cabeça, em negativa, quando ele me questionou se a Marilda desconfiava de algo. Nem sei como levantei-me daquela cadeira e subi as escadas até o terceiro andar. A cabeça girava a mil quilômetros por hora. Só então entendi o desespero do dr. Décio tentando sem sucesso ouvir os batimentos cardíacos do bebê e cobrando da enfermeira a troca das pilhas do aparelho.
Um enorme vazio se apossou de todo o meu ser, o olhar perdido. E a espera angustiante por uma notícia, nutrindo uma enorme esperança de que uma porta se abrisse e o dr. Décio aparecesse com um bebê chorando em seu colo. Mas nada! Só olhares de piedade das enfermeiras e atendentes.
Não sei quanto tempo transcorreu, mas para mim foi uma eternidade. Quando, finalmente, uma porta se abriu, o dr. Décio saiu. Estava sereno como sempre. Ao ver-me, perguntou se alguém já tinha dado alguma informação. Respondi que não e ele, sem rodeios, deu a notícia: "Era um menino. Já devia estar em óbito há alguns dias. A Deolinda está bem e você já pode vê-la".
O chão sumiu sob meus pés. O desespero apossou-se de mim. Nesse momento entraram pelo corredor meus irmãos Camilo e Joaquim. Chegavam alegres pelo nascimento de mais um sobrinho sem sequer imaginar que era um natimorto.
Entrei no quarto e encontrei a Marilda com olhar vago, distante... No abraço do reencontro apenas choramos copiosamente. Meu irmão Joaquim foi quem me trouxe à realidade desta vez: "Precisamos providenciar o funeral".
Dividido, sai com o Joaquim e fomos à Funerária Bom Pastor, que ficava na rua Tamoio, próximo ao jornal O Liberal. Após preencher vários papéis, o funcionário levou-nos a uma sala para escolher o caixãozinho. Desabei de novo. Passei longos meses imaginando o momento de sair da maternidade para comprar uma roupinha para meu bebê, pois não sabíamos até então se seria menino ou menina. E agora estava ali, comprando não uma roupa, mas uma urna funerária.
Pedi a meu irmão que resolvesse a situação e saí, pra chorar, uma dor incalculável corroendo meu coração. Dali retornei ao hospital Samam para ficar com a Marilda. Foi, talvez, a pior noite da nossa vida.
Exatamente hoje ele faria 21 anos. Só vi seu rostinho por alguns minutos, antes de ser enterrado, mas a imagem continua muito viva em minha mente, os lábios rosados, o cabelinho liso... Como também continua viva a lembrança de meu pai me esperando no portão da Matriz Nossa Ssenhora Dores, onde acontecia o velório, os olhos marejados de lágrimas. Não disse nenhuma palavra, apenas um abraço forte que revelou toda a ternura e a enorme compaixão paternal.
"Te amaremos sempre", é a inscrição que colocamos sobre a sepultura de nosso bebê natimorto, uma frase simples, que saiu de nossos corações naquele momento de dor, de comoção até, mas que a cada dia revela-se profunda, cheia de sentido, verdade irrefutável até o último dia de nossas vidas. Te amaremos sempre, anjinho querido.
(Publicado originalmente no Facebook em 17/10/12)
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