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Nick Prince |
E me lembro da manhã em que ele foi atropelado por um caminhão na estrada do bairro Lagoa da Mata, onde morávamos. Eu devia ter quatro ou cinco anos.
E me lembro que senti muita raiva, talvez até um ódio infantil, daquele motorista que matou meu cachorrinho. Chorando compulsivamente, eu cutucava seu corpo inerte com uma pequena vara, querendo que ele se levantasse e voltasse a correr e brincar. Foi minha primeira grande perda.
Para tentar compensá-la vieram o Leão e o Feroz. O Leão já veio grande, de presente de minha tia Nena. Era grande e gordo, cotó, mas extremamente dócil com todos de casa. Parceiro das brincadeiras. O Feroz ganhou merecidamente o nome porque era muito bravo. Os dois formaram uma dupla muito especial. Amigos, parceiros.
Nos acompanharam por muitos anos enquanto moramos no sítio. Quando mudamos para a cidade não se adaptaram ao novo estilo de vida e logo se foram.
Cresci, fiquei adolescente, jovem, adulto. E também cresceu dentro de mim a convicção de não possuir animais. De início era apenas uma tentativa de evitar a dor de novas perdas. Com o tempo aprendi, especialmente com São Francisco de Assis, que animais não foram criados para serem possuídos.
O pobrezinho de Assis tinha predileção por todas as formas de vida, a ponto de retirar os insetos e os vermezinhos do caminho para que não fossem esmagados por algum viajante distraído. Amor à vida, independente de sua forma.
Mas ainda chegamos a ter uma cadelinha vira-poodle, a Fofa, presente dado à Juliana Lima Lacerda quando fez três aninhos. Inteligente, fiel, obediente, conviveu conosco por longos 14 anos. Morreu velhinha, deitada na nossa varanda, olhando para dentro de casa. Outra perda e a convicção mais forte de que os animais são criados para a liberdade.
Mais recentemente, quando me converti ao vegetarianismo, aprendi a ver os animais como parceiros de nossa existência, sujeitos portadores de direitos como nós, criaturas nem mais nem menos importantes que os humanos.
É essa convicção que me levou a combater o assassinato de animais para transformá-los em alimentos. Não pode gerar vida nem saúde o alimento fruto de uma violência e de um assassinato. Foi essa mesma convicção que me levou a combater a escravização dos animais, seja para usá-los como alimento, seja para servirem de instrumentos de nossa diversão e lazer.
Essa mesma convicção me levou a opor-me à ideia de aceitar um filhotinho oferecido de presente por uma colega de trabalho da Marilda Martins. Escravidão, jamais! Mas fui voto vencido e o Nick veio para nossa casa. Com toda a bela feiura de um bebê yorkshire.
Era um pirralho atrevido. Vivia atormentando a Tatá, nossa tartaruga, com seu latido estridente e ameaçando morder suas patas e cabeça. Acho que se divertia em ver a tartaruga recolher-se rapidamente no seu casco. Com o tempo se acostumou e parou de importunar a Tatá. Ou então entendeu minhas advertências de que a tartaruga era mais velha de casa e merecia ser respeitada.
Logo conquistou o carinho e o respeito de todos de casa. E dos amigos da casa. Tornou-se meu amiguinho, parceiro de brincadeiras diárias. Todas as tardes me esperava no portão, segurando entre os dentes seu brinquedo preferido, um Pluto de pelúcia todo rasgado pelos dentinhos afiados. Mal me via e soltava o brinquedo, numa provocação matreira, esperando que eu fizesse menção de pegá-lo. Aí agarrava de novo o bichinho e saía correndo, saltitante de alegria.
Conseguiu me mostrar que, mesmo “aprisionado” em nossa casa, não queria e não se sentia nosso escravo. Queria e se sentia nosso amigo.
Hoje, quando cheguei do trabalho, não o encontrei me esperando no portão. Vizinhos e amigos velavam seu corpinho frágil e ensanguentado, coberto por um jornal. Não o toquei com uma varinha tentando reanimá-lo, como fiz há 43 anos com o Bobi. A maturidade mata as ilusões infantis. Não quis vê-lo morto nem saber detalhes do seu atropelamento. Apenas senti no fundo da alma a perda de meu amiguinho.
Agora, enquanto escrevo, sinto a falta de seu longo pelo se enroscando em meus pés, sua língua me lambendo carinhosamente, seu corpo se contorcendo no chão até encostar nos meus pés, à espera de um cafuné, seus dentinhos dando mordidelas nas pontas de meus dedos, chamando para a brincadeira.
Adeus, Nick! Ou, quem sabe, se os animais também tiverem seu cantinho no céu, até qualquer dia desses, quando nos encontraremos todos: Bobi, Leão, Feroz, Fofa, Nick e eu. E juntos faremos da verde e florida relva (é assim que imagino o céu) nosso campo de eternas brincadeiras.
(Publicado originalmente no Facebook em 06/09/2012)
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