Viajar pelo Brasil, conhecer suas belezas e segredos, beber da sabedoria popular, desvendar os mistérios presentes nos recônditos de cada cidade ou vilarejo, mergulhar na história viva dos relatos, monumentos e sítios históricos... Foi um sonho que acalentei por muitos anos na minha vida, quase uma utopia.
Foi só recentemente, nos governos de Lula e Dilma, que comecei a realizá-lo. Mais do que uma mera coincidência, acredito e credito o sonho concretizado às oportunidades criadas. Nas muitas viagens, experiências riquíssimas, aprendizados inesquecíveis, emoções inestimáveis.
Um chapéu, uma bengala, um óculos e uma simples caricatura traçada pelo saudoso Henfil marejaram meus olhos quando adentrei, anos atrás, o Memorial Tetônio Vilela, em Maceió, projeto que eterniza a vida do menestrel das Alagoas, assim batizado na composição de Milton Nascimento e Fernando Brandt.
Revivi ali, em poucos minutos, a luta pelas Diretas Já e a trajetória daquele usineiro, adesista de primeira hora da ditadura implantada pelo golpe militar de 64, que gradualmente foi radicalizando na luta pelas liberdades políticas e pela redemocratização do país, na mesma medida em que um câncer lhe consumia as forças e a vida. Emoção indizível!
Nada comparado, entretanto, à experiência vivida no último domingo, 4 de setembro, quando visitei Olinda. Já tinha em mente o roteiro com os pontos turísticos que desejava conhecer, mas me permiti ser conduzido pelo Renato, o guia turístico que nos abordou no semáforo, na sugestiva esquina da Rua do Sol com Avenida Liberdade.
Renato levou-nos direto ao Alto da Sé e apressou-nos: “é melhor conhecer a catedral agora, porque depois fecha”. Entramos. Renato, caminhando célere à nossa frente, conta resumidamente a história do templo, suas características arquitetônicas descaracterizadas ao longo do tempo e retomadas na última reforma.
Ele continua falando, mas sua voz fica inaudível para mim quando pouso os olhos num dos sepulcros localizados numa capela lateral. O coração dispara, sobe um nó à garganta, um peso se abate sobre o peito, suspiro profundamente e só a muito custo consigo conter as lágrimas que vertem copiosamente. Estou à frente dos restos mortais de Dom Hélder Câmara.
Permaneço longos segundos nesse êxtase. Sinto a presença de Dom Helder, chamado de arcebispo vermelho pela ditadura militar. Vejo-o denunciando profeticamente a tortura praticada nos porões do regime ditatorial, defendendo ardorosamente os direitos humanos, vivendo a radicalidade do Evangelho, sofrendo censuras e ameaças à vida.
Ouço os estampidos das metralhadoras disparando contra sua residência na Igreja das Fronteiras, no Recife. Sinto a sua dor com o assassinato do padre Antonio Henrique, seu colaborador na Arquidiocese de Olinda e Recife, cujo corpo trucidado pelas forças da repressão hoje repousa em sepultura ao lado da sua.
Suas palavras martelam vivas em minha mente: “o verdadeiro cristianismo rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”. Sua generosidade persiste como exemplo: “as pessoas são pesadas demais para serem levadas nos ombros. Levo-as no coração”.
Seus ensinamentos, sempre atuais, indicam um propósito de vida: “há criaturas como a cana: mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura”.
Sua indignação é também a nossa indignação diante da seletiva e hipócrita moralidade burguesa: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. A única diferença é que hoje nos chamam de petralhas.
Pergunto a Renato se conheceu Dom Hélder, ele diz que não, que tinha só dez anos quando o bispo faleceu, mas afiança que todos que o conheceram atestam sua santidade e esperam pela sua canonização. "Só falta um milagre para ele virar santo", acrescenta.
Ainda absorto nas lembranças e pensamentos apenas constato: “Dom Hélder nos faz muita falta nesses tempos difíceis de golpe à democracia!”
Seguimos a caminhada dentro da Sé, paro para contemplar o altar riquissimamente adornado por detalhes em ouro, contrastando com a vida despojada de dom Hélder. Renato aponta o chão à minha frente e informa: “aí foi a primeira sepultura do bispo”. Soa como a admoestação de Javé a Moisés, no livro do Êxodo: “tira as sandálias dos pés, porque este chão em que pisas é santo”.
Saio da Sé com o coração esfuziante, repleto de alegria, revigorado, fortalecido, compreendendo como dom Hélder que “é graça divina começar bem. Graça maior persistir na caminhada certa. Mas graça das graças é não desistir nunca”. Especialmente quando a caminhada é pela liberdade e pela libertação de tudo que oprime, escraviza, subjuga e aniquila o povo de Deus.
Quem sabe não seja esse o milagre que faltava, Renato!
sexta-feira, 9 de setembro de 2016
quinta-feira, 1 de setembro de 2016
Jarbas ou Anselmo?
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Jarbas Pereira Marques |
Foi ali que iniciou sua militância no movimento estudantil secundarista, na segunda metade da década de 60. Anos sombrios da ditadura militar implantada em 64, que acabou com as eleições diretas, suprimiu direitos políticos e constitucionais, impôs a censura, a perseguição política e a violenta repressão aos que se opunham ao regime.
A 10 dias de completar 20 anos de idade, Jarbas foi preso quando distribuía panfletos convocando para o congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Foi considerado subversivo e torturado pelos órgãos de repressão de Pernambuco. Saiu doente da prisão. Mas também saiu fortalecido nas convicções e no propósito de combater a ditadura, lutar pela democracia.
Na militância conheceu Tércia Maria Rodrigues, por quem apaixonou-se e com quem casou-se em 17 de dezembro de 1970. Moraram inicialmente em São Paulo mas regressaram ao Recife cerca de um ano depois, com a missão de organizar no Nordeste a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Foi na Livraria Moderna, centro do Recife, onde estava trabalhando, que Jarbas caiu novamente nas garras da repressão, no dia 08 de janeiro de 1973. Três dias antes, havia procurado a advogada Mércia de Albuquerque Ferreira, a quem relatou a suspeita de ter sido delatado por um agente da repressão infiltrado na VPR. Confiou a ela algumas fotos, documentos e revelou a angústia e a amargura da prisão iminente.
Em depoimento à Justiça, Mércia descreve Jarbas como "um tipo romântico e ingênuo" e diz que o aconselhou a fugir. Ele, porém, arriscou e entregou a própria vida para garantir a segurança da frágil esposa e da filhinha Nadejda, de apenas 9 meses. Por amor, entregou-se ao martírio para preservar filha e esposa às quais permaneceu fiel até o fim.
Preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, Jarbas foi trucidado em sessões de tortura. Três dias depois os jornais noticiaram sua morte e de mais cinco militantes da VPR na Granja São Bento, na cidade pernambucana de Paulista, todos presos e torturados até a morte e levados à chácara para forjar o cenário de um falso tiroteio com as forças policiais.
Amor, solidariedade, compaixão, fidelidade, definem Jarbas.
Soledad Barret Viedma, uma das cinco militantes assassinadas
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Soledad Barret Viedma |
Paraguaia de nascimento, Sol viveu exilada na Argentina e no Uruguai devido ao ativismo político de sua família. Aos 17 anos, em Montevidéu, foi sequestrada por neonazistas que gravaram a suástica em suas coxas, com uma navalha, por se negar a gritar "Viva Hitler".
Fugindo das perseguições, refugiou-se em Cuba, onde conheceu o brasileiro José Maria Ferreira de Araújo, militante da VPR que estava exilado na Ilha, com quem se casou teve uma filha.
José Maria, o Arariboia retornou ao Brasil e foi capturado e morto em 1970. Sua morte fortaleceu em Soledad a disposição de lutar contra as sangrentas ditaduras militares nos países latino-americanos.
Passou a militar na VPR, onde conheceu José Anselmo dos Santos, amigo e companheiro de José Maria. Ex-sargento da Marinha, "cabo" Anselmo tinha liderado a revolta dos marinheiros, no Rio de Janeiro, em março de 64, dias antes do golpe militar. Foi preso pela ditadura, fugiu e exilou-se em Cuba. Na volta ao Brasil passou a integrar a VPR.
Quando Sol foi presa, torturada e executada pelo delegado Fleury, em janeiro de 1973, estava grávida de cabo Anselmo. Quando foi ao necrotério do Recife, em frente ao Cemitério de Santo Amaro, à procura do corpo de Jarbas, a advogada Mércia encontrou seis corpos. Ela conta que "em um barril estava Soledad Barrett Viedma: ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas e, no fundo do barril se encontrava também um feto".
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Cabo Anselmo |
Cabo Anselmo, ao contrário de Jarbas, não protegeu Soledad. Sem remorso e sem dor ele a delatou e a entregou grávida ao delegado Fleury para ser executada, como fez com os outros cinco massacrados na Granja São Bento e com dezenas, talvez centenas, de companheiros entregues à tortura e à morte. Cabo Anselmo, na verdade, era agente policial infiltrado.
No livro Soledad no Recife, o escritor pernambucano Urariano Mota conta que Sol, antes de morrer apontou para o traidor e sentenciou: "Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século".
Canalhice, covardia, torpeza, vilania, traição, definem cabo Anselmo. E cinismo! Assassino cruel de sua amorosa companheira e de seu filho, cabo Anselmo disse que o fez para salvar o Brasil do comunismo.
Na vida, sempre somos instados a tomar posição, a escolher entre Jarbas e cabo Anselmo. A maioria de nós escolhe Jarbas, ainda que isso represente a derrota e até a morte. Mas há quem se identifique com Anselmo. Escolhem Caim no lugar de Abel, Silvério no lugar de Tiradentes, Judas no lugar de Jesus.
Vi isso ainda ontem em vídeo publicizado por uma controversa coadjuvante da política local, no qual, cinicamente, justifica sua escolha por Temer no lugar de Dilma. Por amor ao Brasil, diz ela.
Infelizmente, no Brasil que ela diz amar não cabem os brasileiros.
Obrigado, querida!
"A gratidão é a virtude das almas nobres".
Do primeiro ao último dia de seus dois mandatos, em cada gesto seu, cada iniciativa, cada projeto, cada ação, você dignificou o voto que lhe confiei nas duas eleições presidenciais.
Há quem diga que não fez mais do que obrigação. Há até quem se beneficiou dos programas sociais implementados e/ou fortalecidos em seus governos, como o Minha Casa Minha Vida, o Bolsa Família, o Mais Médicos, o ProUni e o Pronatec, e, ainda assim, está vibrando com o golpe que lhe usurpou a Presidência.
Particularmente, não sou e nunca fui beneficiário de nenhum dos programas sociais do governo federal. Sequer sou usuário direto do SUS, exceto daquelas ações ligadas à Vigilância Sanitária.
Mas hoje, quando a traição e os mesquinhos interesses das nossas elites consumam o golpe contra seu mandato e contra a democracia, preciso lhe dizer: MUITO OBRIGADO!
Obrigado por colocar o combate à miséria e a fome dentre as prioridades de seu governo.
Obrigado por defender direitos e programas que garantiram a inclusão de milhões de brasileiros.
Obrigado pela expansão das universidades e institutos federais, o ProUni, o FIES e a política de cotas que garantiram o acesso ao ensino superior a milhares de filhos de trabalhadores, inclusive a dois dos meus filhos, Francisco e Pedro.
Obrigado pelas políticas afirmativas e emancipatórias implementadas em favor da população afrodescendente, das mulheres, dos indígenas, da juventude.
Obrigado por não transigir com a corrupção nem ceder às chantagens.
Obrigado por defender, com altivez, garra e serenidade, até o último segundo, a democracia expressa no voto de 54 milhões de brasileiros e brasileiras.
Obrigado por não sucumbir à violência golpista e infundir em nossos corações a esperança e apontar o caminho da luta para enfrentar a escalada fascista, golpista e retrógrada que se abate sobre o país.
Obrigado, obrigado, obrigado...
(Publicado originalmente no Facebook em 31/08/2016)
quinta-feira, 25 de agosto de 2016
Amor além da vida
Assim que as luzes se apagavam, ao som de “Theme from a Summer Place” as cortinas se abriam, revelando a enorme tela onde seria projetado o filme. Era o momento mais esperado. Mas antes dele tinha o ritual de subir as escadarias, comprar o ingresso e comprar balas na cantina. Quando a tela se iluminava com o início da projeção, instantaneamente a meninada batia os pés no piso de madeira, fazendo um enorme barulhão.
(Publicado originalmente no Facebook em 25 de agosto de 2013)
Não fui muitas vezes, mas é essa a lembrança que ficou das matinês de domingo à tarde no Cine São Joaquim. Quase sempre para assistir Tarzã. Na juventude fui algumas vezes, mas a sensação já era outra, embora a música de abertura, a cortina, a tela, as poltronas e o chão de madeira continuassem os mesmos.
Dessa época me recordo da experiência do cine-clube, uma tentativa heroica e desesperada de salvar o cinema do inevitável fechamento. Universitários, professores e a elite intelectual da época se uniram e contribuíam com um valor mensal para manter o cinema, com direito a sessões seguidas de debate às sextas-feiras. O primeiro filme exibido pelo cine-clube foi Z, do Costa Gavras, isso lá pelos idos de 1982 ou 1983.
Pouco tempo depois, quando já havia me mudado para Nova Odessa, o Cine São Joaquim fechou e o prédio abrigou um templo de uma igreja pentecostal. Final infeliz de mais uma sala de projeção que não resistiu ao advento do vídeo-cassete.
Felizmente, duas décadas depois, o cinema seria reaberto, por iniciativa do empresário Acácio Cruz, agora com o nome de Cine Teatro Lúmine. A antiga sala, com mais de mil poltronas, deu origem a duas: uma para o teatro outra para o cinema. Mas perdeu o encanto. Nem a música toca mais.
Também não me encantam as salas de cinema de shopping center. São apenas um apêndice desse templo dedicado ao consumismo. Me contento em assistir a bons filmes em casa mesmo, projetando na parede da sala. Foi assim que assisti, junto com a Marilda, o filme “Amor Além da Vida”.
Vivíamos um momento de crise em nossas vidas, de dificuldade de aceitação de algumas situações. Eu, convicto de minhas posições, delas não abria mão e não entendia porque a Marilda se recusava a aceitar o que era óbvio e claro como a luz do dia. Daí resultavam os conflitos que, pouco a pouco, foram minando nossa vida comum.
Quando assistimos ao filme, juntos, um novo horizonte descortinou à minha frente. Na película, Robin Williams interpreta Chris Nielsen, que forma uma família feliz com sua esposa Annie e os filhos. Tudo começa a mudar quando os filhos morrem num acidente. Vem a dor, o sofrimento e a superação do trauma. Até que o próprio Chris morre num acidente.
No paraíso, ele fica sabendo que Annie, tomada pela dor, cometera suicídio. E vai até o inferno procurá-la, mesmo avisado de que ela não o reconheceria. Mais do que ir até o inferno, ele decide lá ficar com Annie que, de fato, não o reconhecera nem se dispunha a deixar aquele lugar. O amor incondicional de Chris fez com que ele abrisse mão da eternidade no paraíso para ficar ao lado da pessoa amada, no inferno e sem ser por ela reconhecido.
Aprendi que é assim na nossa vida. Precisamos mergulhar no “inferno” vivido pela pessoa amada para entendê-la e ajudá-la nas dificuldades. E quando temos essa capacidade, esse despojamento, esse amor verdadeiro transforma o inferno em paraíso. Graças ao que aprendemos no filme, Marilda e eu já superamos várias crises. E acrisolamos nosso amor com o fogo das profundezas dos “infernos”. A cada dia construímos nosso paraíso. Te amo, Linda.
(Publicado originalmente no Facebook em 25 de agosto de 2013)
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
Feridas e cicatrizes
“Por detrás de uma pessoa que fere há sempre uma pessoa ferida. Ninguém faz os outros infelizes, se primeiro não for infeliz.”
(Augusto Cury)
Toda ferida, seja do corpo ou da alma, precisa de tempo e cuidados para ser curada. O processo de cura é doloroso, quase sempre demorado, mas necessário. E, ao final, restará uma cicatriz, “visível marca de um riscado inesperado, pra lembrar e nunca mais esquecer”, como canta a banda de rock pernambucana Nação Zumbi. Curada a ferida, a cicatriz permanece lá, por toda a vida, impedindo o esquecimento do que a provocou, motivando a abstenção de sua causa.
Simplesmente ignorar a ferida, não ajuda em nada. Você pode até escondê-la, cobri-la, abafá-la, disfarçá-la... mas ela continua lá, doendo, febril, muitas vezes sangrando. E o pior, pode infeccionar, gangrenar, levar a uma amputação, quiçá à morte por septicemia.
Em agosto de 2015, a empresária e política novaodessense Carol Moura dividiu as opiniões ao cobrir com tinta inscrições racistas, de orientação assumidamente nazista, pichadas no muro do cemitério municipal. Muitos aplaudiram a atitude da então prefeiturável, identificando nela um gesto de solidariedade aos haitianos, vítimas da odiosa pichação. Outros tantos classificaram a ação como oportunismo e demagogia.
Acho irrelevante discutir a motivação de Carol Moura para apagar a pichação. Mais importante é refletir sobre as consequências. Apagar a pichação não apagou o sentimento racista do(s) pichador(es). A ferida, ainda que coberta por tinta, continua aberta, doendo, sangrando. Ignorá-la, encobri-la, escondê-la é correr o risco de uma gangrena social, de uma violenta amputação racial e até de uma intolerância septicêmica que leve a óbito a convivência comunitária fundada na ética, no respeito, na solidariedade.
Penso que não é esse o caminho mais adequado para curar a ferida. Há uma via paralela. É preciso deixar a ferida aberta, exposta ao sol da justiça, combater os germes do ódio, do preconceito e do rancor com antissépticos apropriados, como o diálogo, a tolerância, o amor, o perdão. É um processo doloroso, demorado, mas necessário. Sem ele, nunca chegaremos à cicatriz, ao mesmo tempo sinal de cura e marca “pra lembrar e nunca mais esquecer”, evitando assim o reabrir da ferida.
Tem razão o psiquiatra colinense Augusto Cury. “Ninguém agride os outros sem primeiro se auto-agredir”. Os atos de rejeição, de exclusão e de morte, diz o teólogo Leonardo Boff, “começam no coração: nele se alimenta o preconceito, se aninha a má intenção e se elabora a antipatia”.
Considero que o ódio, que Boff define como “uma avassaladora energia de destruição”, é como uma brasa fumegante que a pessoa aperta na própria mão. Quanto mais queima e machuca, mais aperta. Se você está entre os que destilam ódio, rancor, raiva, preconceito, intolerância... tenha certeza de que tudo isso machuca a vida, provoca doenças, inclusive câncer.
Meu conselho: abra o coração, jogue fora a brasa. Garanto que se sentirá muito bem, assim fazendo. Veja bem, não estou dizendo pra jogar fora suas convicções, crenças e opções políticas. Apenas o ódio.
(Publicado originalmente no Varal de Notícias em 14/08/2015)
quarta-feira, 17 de agosto de 2016
Balido submisso
“...os mais estúpidos, tais como as
ovelhas, eram incapazes de aprender...”
(George Orwell - “A Revolução dos Bichos”)
Se pouco ou nada sei sobre cães e porcos, muito menos sobre ovelhas. Afinal, nunca tive uma. Baseada em diversas fábulas, algumas bem pueris outras geniais, a imagem que tenho desses animais é, digamos, simplória e estereotipada. Ovelhas, assim imagino, são dóceis, ingênuas, totalmente vulneráveis aos seus predadores, andam em rebanhos, dependendo sempre da voz de um pastor para orientar seu rumo. Sozinhas, sem quem as oriente, perdem-se com facilidade. Basta uma correr que as demais, desorientadas, correm atrás.
Li algum tempo atrás uma notícia de que em Istambul, na Turquia, alguns pastores deixaram o rebanho pastando à beira de um penhasco e afastaram-se um pouco para tomar seu café da manhã. Tomados de perplexidade, os pastores presenciaram uma ovelha, sem razão aparente, lançar-se ao precipício, sendo imediatamente seguida pelas outras 1500, resultando em 450 animais mortos. Só não pereceram todas porque a queda das últimas foi amortecida pela pilha de ovelhas que jazia inerte ao pé do despenhadeiro.
Assim são as ovelhas. Volúveis, facilmente influenciáveis, “maria-vai-com-as-outras”, pra usar uma expressão bem brasileira. Comportamento bem diferente, paralelo, ao dos cães. E também ao dos porcos. Sobre esses e seus correspondentes na política, com seu característico apetite voraz, já comentei na coluna anterior, “Da lama à panela”. Faltou falar do papel das ovelhas no processo político.
No filme australiano “Babe”, as ovelhas cumprem sempre um papel secundário, de total submissão, primeiro aos cães, depois ao simpático porquinho que se esforça para ser um leitão-pastor. Não é diferente no clássico romance “A revolução dos bichos”, de George Orwell, onde a ingênua submissão das ovelhas, que beira a imbecilidade, é determinante para sufocar qualquer tentativa de questionamento ou rebelião à ditadura dos suínos liderados pelo porco-tirano Napoleão.
Um a um, os princípios da revolução dos bichos, os sete mandamentos que deveriam garantir a convivência harmônica na granja dos bichos, vão sofrendo adaptações para atender aos interesses e privilégios dos porcos. Mas as ovelhas, que sequer conseguiram decorar os sete mandamentos, além de nada questionar, suplantam todo argumento contrário a Napoleão com um balido uníssono: “quatro pernas bom, duas pernas ruim”.
Sua memória curta não permite lembrar como era a vida antes da revolução comandada por Napoleão, comparar se as condições de sobrevivência na granja estão piores ou melhores. Nem mesmo conseguem identificar se o que foi prometido, foi ou está sendo cumprido.
A metáfora de Orwell cai como luva sobre a conjuntura política da cidade. As mesmas ovelhas que antes, durante décadas, se submeteram passivamente ao jugo do granjeiro Jones, agora balem em defesa da “revolução napoleônica”. Vez por outra até ouvimos alguma voz isolada questionando o total abandono das promessas e compromissos de campanha do Napoleão local e os privilégios concedidos à sua vara de vorazes e insaciáveis suínos.
Alguma ovelha incauta, como autêntica “maria-vai-com-as-outras”, até ensaia engrossar as críticas. Mas não demora a voltar atrás tão logo o eloquente e artificial discurso de Napoleão é propagado nas redes sociais pelos seus súditos devoradores de milho (ou milhões).
Há quem acredite que o alcaide vem perdendo o enorme apoio popular que o instalou no Paço e que de lá será expulso no pleito deste ano. Tenho minhas dúvidas. Aliás, não tenho. Estou convicto de que, tal como na obra de George Orwell, o rebanho ecoará um espetacular e estrondoso balido, devidamente adaptado aos novos tempos: “quatro pernas bom, duas pernas melhor”.
Assim será até o dia em que as ovelhas descobrirem que não precisam dos porcos, nem de Napoleão nem do velho Jones. Que podem, autonomamente, determinar suas vidas, seu futuro, seu governo.
(Publicado originalmente no Facebook em 30/08/2015)
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
Rumo ao abatedouro
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No corredor da morte |
Vegetariano há 21 anos, passei a ver a pecuária como sinônimo de violência e morte. Violência contra os animais, violência contra o meio ambiente, violência contra nossa saúde.
Essa "ignorância bovina" me deixou intrigado com o sonho que tive esta noite. Afinal, sonhei com um boi. Ou melhor, sonhei que era parte de um boi. Normalmente não me lembro dos sonhos ao acordar, mas esse, com uma riqueza enorme de detalhes, está martelando em minha cabeça.
No meu sonho eu era uma pequena célula, mais precisamente um linfócito, de um grande e forte boi. Nem sei se o sistema imunológico bovino tem linfócitos, mas no meu sonho tinha. No começo esse boi vivia livre numa grande pastagem e era saudável. A alimentação equilibrada e natural proporcionava a normalidade das funções vitais, o equilíbrio energético e a imunidade.
O boi vivia feliz, numa perfeita simbiose com as bactérias e protozoários da flora ruminal. Até que apareceram alguns parasitas que tomaram posse do grande corpo, trazendo desequilíbrio e destruição das defesas naturais. Pouco a pouco o boi foi adoecendo.
Os parasitas devoravam com voracidade sem igual todos os nutrientes absorvidos, condenando o boi à magreza, à desnutrição e à anemia, além da morte prematura por inanição de milhões de células. Fraco, o boi contraía sucessivas e graves infecções a cada espirro dos colegas de pasto.
Então resolveram consultar uma clínica veterinária. No meu sonho, consegui identificar a sigla FMI na fachada dessa clínica, mas nenhuma explicação do seu significado. A equipe de veterinários, ortodoxa em suas terapias, prescrevia doses cavalares (ou bovinas, sei lá!) de remédio amargo para tentar amenizar os sintomas.
Os efeitos eram devastadores. As drogas produziam efeitos colaterais fortíssimos que exigiam trabalho redobrado dos órgãos, sistemas e células, além de estrangular e sufocar o sistema imunológico, adoecendo e matando milhares de células.
Felizmente sobrevivi. E, infelizmente, os parasitas também. Dotados de uma inteligência incrível, eles refugiavam-se em locais inacessíveis aos medicamentos e voltavam a atacar assim que os efeitos passavam, devorando a parca comida da dieta restritiva imposta pelos veterinários.
As visitas da equipe da clínica FMI eram constantes e os remédios cada vez mais amargos. Para desgraça do boi e prazer dos parasitas. Até o dia em que o boi cansou e, por conta própria, resolveu procurar outro tratamento. Nada de veterinários, nada de medidas ortodoxos, nada de remédios amargos.
As visitas da equipe da clínica FMI eram constantes e os remédios cada vez mais amargos. Para desgraça do boi e prazer dos parasitas. Até o dia em que o boi cansou e, por conta própria, resolveu procurar outro tratamento. Nada de veterinários, nada de medidas ortodoxos, nada de remédios amargos.
O novo tratamento consistia apenas no fortalecimento do sistema imunológico, na normalização das funções vitais, na adequada nutrição e energização das células, garantindo que, minimamente, as vitaminas, minerais e proteínas chegassem a todas elas. Em outras palavras, distribuição mais equitativa dos nutrientes.
Tratamento lento, mas progressivo. Pouco a pouco, tecidos necrosados começaram a regenerar-se, infecções crônicas foram debeladas, o sangue foi revigorado. O boi foi ganhando peso e energia, o pelo ficou lustroso. Até sua auto estima cresceu. E ele conseguiu ficar de pé e caminhar novamente. Passos lentos, ainda, mas firmes. Voltou a alegria de viver.
O problema é que o tratamento natural não eliminou os parasitas. Eles até se aquietaram por um tempo, pareciam conformados com a redução da comida que, agora, era melhor distribuída. Mas não. A essência dos parasitas é sugar mais e mais de seu hospedeiro.
A saúde do boi em franca recuperação, suportando até mesmo infecções que abateram outros bois do rebanho, logo atraiu olhares externos. E a ira do antigo veterinário que, aliado aos parasitas, passou a sabotar o novo tratamento.
Trataram de espalhar carrapatos sobre todo o couro do boi. Carrapatos que lhe sugavam o sangue avidamente. E, então, os parasitas passaram a propagar às células a ideia de que a culpa era do novo tratamento. Que os carrapatos eram partidários e amigos da nova equipe de terapeutas, que a intenção deles era transformar o sangue verde e amarelo (sim, o boi tinha sangue verde e amarelo) em vermelho.
A terapeuta que chefiava a equipe até tentou explicar que o tratamento estava indo bem, que o corpo conviveria ainda algum tempo com os parasitas e que esses deixariam de existir quando a saúde estivesse completamente restabelecida e os hábitos saudáveis consolidados. Mas não teve jeito. E, para tentar contornar a situação, a terapeuta cedeu aos apelos e, de forma paliativa, ministrou carrapaticidas.
Foi um desastre. O veneno até eliminou alguns carrapatos, mas não foi suficiente para conter a infestação, pois esses artrópodes têm uma capacidade de reprodução incrível. E, pra complicar, atingiu a corrente sanguínea, intoxicando as células, enfraquecendo e desorientando o sistema imunológico.
Alguns vírus oportunistas atacaram, invadiram algumas células e passaram a reproduzir-se aceleradamente. As células invadidas, insufladas pelos parasitas de sempre, voltaram-se contra o organismo, deprimindo-o, enfraquecendo-o, culpando-o pela infestação de carrapatos.
Não sei se células têm sentimentos, mas no meu sonho essas células dominadas pelos parasitas encheram-se de ódio e passaram a atacar todas as demais células do corpo. Os neurônios entraram em colapso, as sinapses foram interrompidas e o corpo passou a orientar-se, de forma suicida, pela rede de informações retro-virais, tudo orientado pelos seculares parasitas.
No meio disso tudo, me vi um valente linfócito, unido a outros linfócitos, leucócitos, neutrófilos, monócitos, basófilos e eosinófilos, lutando desesperadamente para combater os parasitas e tentar reverter o quadro. Não sem enfrentar provocações irônicas, agressões e ofensas das células dominadas, nos acusando de defender os carrapatos.
No meio dessa luta inglória, pude ver o boi, cabisbaixo, caminhando pesadamente para o abatedouro. A cada etapa dessa caminhada, no estreito corredor, uma porteira se fecha. Várias já fechadas, restando apenas uma. Algumas células combatentes, companheiras nessa luta, desistem, entregam os pontos. Outras, iludidas, tentam nos convencer que é melhor uma aliança com os carrapatos para ganhar força e enfrentar os parasitas mais à frente.
Não percebem que os carrapatos são tão inimigos quanto os parasitas, nem que tudo estará acabado quando a haste metálica do revólver pneumático atingir o cérebro ou a marreta estraçalhar a caixa craniana. Só os vermes sobreviverão na carniça.
O sonho vira pesadelo. Desesperadamente tento acordar outras células desse estado de torpor. Sem sucesso! Mas não tenho outra saída. Vou resistir até o fim. Na esperança de que ainda consigamos, antes do momento derradeiro, provocar uma febre com ataque convulsivo que, com os movimentos anárquicos dos membros, seja capaz de romper os muros e livrar o boi do corredor da morte.
No final das contas quem acordou fui eu. Não o linfócito, eu mesmo, João. E estou até agora tentando decifrar a mensagem do sonho. Alguém pode me ajudar?
Não sei se células têm sentimentos, mas no meu sonho essas células dominadas pelos parasitas encheram-se de ódio e passaram a atacar todas as demais células do corpo. Os neurônios entraram em colapso, as sinapses foram interrompidas e o corpo passou a orientar-se, de forma suicida, pela rede de informações retro-virais, tudo orientado pelos seculares parasitas.
No meio disso tudo, me vi um valente linfócito, unido a outros linfócitos, leucócitos, neutrófilos, monócitos, basófilos e eosinófilos, lutando desesperadamente para combater os parasitas e tentar reverter o quadro. Não sem enfrentar provocações irônicas, agressões e ofensas das células dominadas, nos acusando de defender os carrapatos.
No meio dessa luta inglória, pude ver o boi, cabisbaixo, caminhando pesadamente para o abatedouro. A cada etapa dessa caminhada, no estreito corredor, uma porteira se fecha. Várias já fechadas, restando apenas uma. Algumas células combatentes, companheiras nessa luta, desistem, entregam os pontos. Outras, iludidas, tentam nos convencer que é melhor uma aliança com os carrapatos para ganhar força e enfrentar os parasitas mais à frente.
Não percebem que os carrapatos são tão inimigos quanto os parasitas, nem que tudo estará acabado quando a haste metálica do revólver pneumático atingir o cérebro ou a marreta estraçalhar a caixa craniana. Só os vermes sobreviverão na carniça.
O sonho vira pesadelo. Desesperadamente tento acordar outras células desse estado de torpor. Sem sucesso! Mas não tenho outra saída. Vou resistir até o fim. Na esperança de que ainda consigamos, antes do momento derradeiro, provocar uma febre com ataque convulsivo que, com os movimentos anárquicos dos membros, seja capaz de romper os muros e livrar o boi do corredor da morte.
No final das contas quem acordou fui eu. Não o linfócito, eu mesmo, João. E estou até agora tentando decifrar a mensagem do sonho. Alguém pode me ajudar?
terça-feira, 9 de agosto de 2016
Lucidez
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Sandra, 41 anos, moradora de rua |
“Posso matar o Temer agora?” – questionou, sorriso matreiro no rosto. Rimos junto e autorizei: “Fique à vontade”. Ela, então, pediu licença, tirou da mochila uma pequena garrafa pet com cachaça e matou um gole.
O cheiro da aguardente se acentuou. E ela estampou um sorriso de satisfação. Tentei imaginar quantos sonhos desfeitos, quantas ilusões perdidas, quantas decepções a levaram a buscar na embriaguês o alívio das dores da vida.
Foi quando viu em minha mão o único cartaz da manifestação que pedia “VOLTA, DILMA!” Não se conteve. “Posso segurar?”, perguntou, já tirando-o das minhas mãos. Sorri, assentindo.
Seus olhos fitavam o cartaz como os de uma criança à frente duma vitrine de doces. Os dedos deslizavam sobre o nome da Presidenta, como se acariciassem o próprio rosto de Dilma Roussef. Foram alguns segundos de êxtase que se repetiram várias vezes ao longo da manifestação.
Resoluta, decretou: “Vou com vocês até o fim!”. E, de fato, foi. Não desgrudou um segundo sequer do cartaz, que exibia orgulhosa a todos que passavam. Posou para fotos ao nosso lado, dançou ao som do batuque dos jovens da UJS e gritou “Fora, Temer” em todo o percurso da caminhada contra o golpe.
Às vezes, durante o trajeto que saiu pela Glicério, subiu o calçadão da 13 de Maio e desceu pela Senador Saraiva e a Campos Sales até o ponto inicial, sumia de nossas vistas. Mas logo reaparecia e, sempre sorrindo, justificava: “Me perdi de vocês!”
Querida, delícia, bela, linda... Foram os adjetivos que a vi atribuir à Presidenta Dilma, sempre decretando que “ela vai voltar, precisa voltar”. Na dispersão do protesto, novamente no Largo do Rosário, a perdemos de vista. E ela ficou com meu cartaz. Talvez, nesta noite, durma abraçada a ele numa calçada fria ou sob alguma marquise de Campinas.
Sandra é o seu nome. E vai fazer 41 anos. Vive incógnita nas ruas da metrópole, quase invisível. Talvez só percebam o odor forte de suor misturado com o bafo da cachaça. Talvez a julguem maluca, como ela se autoproclama.
Porém, dizia Aristófanes, dramaturgo grego da antiguidade, “a embriaguez passa, mas a estupidez dura para sempre”. Estupidez de um sistema que se funda na injustiça, na exploração, na desigualdade, na má distribuição das riquezas, na marginalização e na exclusão.
Estupidez de uma elite que forjou uma crise política, sabotou um governo, armou o golpe, apeou do poder político a Presidenta legitimamente eleita. Estupidez daqueles midiotizados que, mesmo não integrando essa elite, bateu panelas, vestiu-se de verde e amarelo e foi às ruas pedir o impeachment da Presidenta, a prisão de Lula e o fim do PT.
Não, Sandra, você não é maluca, não é louca. Parafraseando o nosso inesquecível maluco beleza, “é o mundo que não entende sua lucidez”.
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
Sobrenome

Gosto do meu sobrenome. Martins, acredita-se, deriva do nome latino Martinici, que significa belicoso, guerreiro. Há ainda versões que consideram meu sobrenome como o diminutivo de Marte, o deus da guerra. Mas não é isso o que me faz gostar dele, tampouco a sua sonoridade ou uma eventual fidalguia. Me encanta em meu sobrenome não o que ele significa, mas sim o que representa.
Muito comum em toda a Península Ibérica, chegou ao Brasil através dos espanhóis e portugueses, um deles o meu avô paterno, Joaquim Martins, português de Trás-os-Montes.
Pouco sei da história de meu avô antes de chegar ao Brasil. Até tenho curiosidade. Descobrir onde viveram seus pais, meus bisavós, conhecer a casa onde nasceu e cresceu, se é que ela ainda existe, pisar no chão dos meus ancestrais, sentir ali sua energia, quem sabe até encontrar algum parente distante.
Mas isso não é o essencial. O que importa, de fato, é a história que conheço. A família que meu avô constituiu aqui. Não o conheci. Meu pai, Annibal Martins, era ainda jovenzinho quando ele faleceu. Mas pelo sobrenome me sinto conectado a ele, a meu pai, aos meus tios e tias, todos já falecidos. E também aos meus primos, mesmo aqueles que, por força do patronímico, perderam o sobrenome Martins.
Carregar o sobrenome Martins depois do meu nome representa embeber-me de toda essa história. Não sou um João ninguém nem um João qualquer. Sou o João Martins. E me orgulho disso. Das qualidades e defeitos, conquistas e derrotas, do vigor e das fragilidades da minha família.
Por isso, fico até encabulado quando vejo alguém rejeitar seu sobrenome, independente da razão. Renegar o sobrenome é renunciar à própria história, a essência do próprio ser e até à própria identidade. É rechaçar a trajetória dos ancestrais. É querer ser rio sem nascente.
Sem abrir mão do Martins, até aceitaria acrescentar um sobrenome se essa opção me fosse dada. E seria outro sobrenome de origem latina, que também entrou no Brasil através dos portugueses e que, acredita-se, descende da tradicional Casa Real de Aragão.
Não o escolheria, entretanto, pela origem nobre, mas porque encarna a alma do povo brasileiro e suas mais nobres características: a solidariedade, a tolerância, a criatividade, a alegria, a esperança, a perseverança, a generosidade, a jovialidade e a resiliência.
Por tudo o que representa, escolheria o sobrenome Silva e, de quebra, ainda renderia homenagem à minha avó paterna, Antonia Dias da Silva, também portuguesa, bem como à minha esposa (Deo)Linda Marilda da Silva Martins, que herdou o sobrenome Silva de seu pai e o deu em herança aos nossos filhos.
Publicado originalmente no Facebook em 24/02/2016
P.S. - Muitas outras pessoas seriam merecedoras de minha homenagem, caso pudesse adotar o sobrenome Silva, dentre elas o sempre Presidente Lula, meu compadre frei Carlos Silva e o maratonista olímpico Solonei Silva, que é meu conterrâneo.
E hoje, mais uma entra nesse rol: Rafaela Silva, judoca medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Ela é a cara do Brasil real: mulher, negra, pobre, vítima de racismo... E vencedora! Razões para desistir ela teve de sobra, desde que nasceu. Mas ela é brasileira e não desiste nunca.
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
Uma flor pela paz
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O "tank man", na Praça da Paz Celestial |
O que dizer de uma pessoa desarmada enfrentando mais de uma dezena de tanques blindados? Irracional, no mínimo. Ainda mais sabendo que no dia anterior, no mesmo local, os tanques haviam esmagado veículos e pessoas que participavam dos protestos contra a repressão aos direitos individuais e as condições de vida degradadas após a abertura econômica da China.
Mais do que a ação em si, o que vale é o simbolismo que ela carrega. A imagem do jovem correu o mundo rapidamente, virou capa dos principais jornais e revistas. Até hoje sua identidade é desconhecida, tal como seu paradeiro. O que conversou com o soldado-piloto do tanque também ninguém sabe. O fato, porém, é que depois daquele 5 de junho a China abrandou a linha-dura.
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Uma flor pela paz |
Uma flor contra dezenas de fuzis. Aqui, como em Tiananmen, a força é do simbolismo. Da militância pela paz, da resistência pacífica, da não-violência idealizada e praticada na Índia por Mahatma Gandhi. Dessa jovem é conhecido o nome e o paradeiro. Jan Rose Kasmir, hoje com 65 anos, vive com sua família na Dinamarca.
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Chico Mendes, com seringueiros, organizando um dos muitos empates |
Há exemplos também no Brasil. Xapuri, município do estado do Acre, revelou ao mundo formas pacíficas de resistência. A partir de 1976, sob a liderança de Chico Mendes, famílias de seringueiros passaram a organizar os empates para enfrentar as ações de desmatamento empreendidas pelos pecuaristas. Homens, mulheres, crianças e idosos, de braços entrelaçados, colocavam-se à frente dos peões e jagunços, abraçando as árvores ou cercando os tratores, numa tentativa de convencê-los a baixarem as motosserras e conscientizá-los de que desmatando a floresta eles próprios estariam ameaçados.
Chico Mendes foi assassinado em dezembro de 1988. Até hoje, porém, seu nome simboliza a luta pela preservação das florestas e do uso sustentável de seus recursos.
Dias atrás, São Paulo também presenciou um desses atos inusitados. Aos 75 anos de idade, Eduardo Suplicy colocou-se à frente da Tropa de Choque e deitou-se no asfalto na tentativa de impedir a reintegração de posse de um terreno da Prefeitura, gesto que foi seguido pelos moradores. O ex-senador e ex-secretário de Direitos Humanos da capital foi levado pelos policiais e permaneceu detido três horas por desacato a autoridade. Seu gesto, porém, impediu violência ainda maior da PM contra os moradores que acabaram desabrigados.
Chico Mendes foi assassinado em dezembro de 1988. Até hoje, porém, seu nome simboliza a luta pela preservação das florestas e do uso sustentável de seus recursos.
Dias atrás, São Paulo também presenciou um desses atos inusitados. Aos 75 anos de idade, Eduardo Suplicy colocou-se à frente da Tropa de Choque e deitou-se no asfalto na tentativa de impedir a reintegração de posse de um terreno da Prefeitura, gesto que foi seguido pelos moradores. O ex-senador e ex-secretário de Direitos Humanos da capital foi levado pelos policiais e permaneceu detido três horas por desacato a autoridade. Seu gesto, porém, impediu violência ainda maior da PM contra os moradores que acabaram desabrigados.
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Suplicy enfrenta deitado as botas da Tropa de Choque |
Desobediência civil, direito de resistência... É o que nos resta hoje para enfrentar a situação de ruptura institucional que, embora revestida de legalidade e sustentada pelos que deviam zelar pela defesa do Estado Democrático de Direito, não passa de um golpe de Estado perpetrado por uma quadrilha que usurpou a Presidência da República, ameaça destruir direitos sociais e trabalhistas e entregar o patrimônio do povo brasileiro às multinacionais.
sexta-feira, 29 de julho de 2016
Paulista rima com...
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"Non ducor, duco", expressão da prepotência e arrogância da elite branca paulista |
As ilustrações dos livros e as explicações das professoras me apresentaram os bandeirantes como destemidos heróis, valentes desbravadores do sertão que, partindo de São Paulo, se embrenhavam pelas matas conquistando territórios, alargando fronteiras, construindo um futuro pujante para o Brasil.
Também foi lá na escolinha “sem partido” da roça que ouvi pela primeira vez o acrônimo MMDC, iniciais de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, jovens mártires da Revolução Constitucionalista.
A morte dos quatro estudantes, no dia 23 de março de 1932, nas proximidades do Palácio dos Campos Elíseos, na capital Paulista, foi o estopim para a revolta armada explodir no dia 9 de julho daquele mesmo ano. São Paulo, assim me ensinaram as professoras, ergueu-se contra o resto do país na luta para restabelecer a liberdade e a legalidade, através de uma Constituinte.
Foi assim, naquela escolinha rural “desideologizada” que fui, pouco a pouco, doutrinado pelo que Luis Fernando Cerri, doutor em Educação pela Unicamp, chama de ideologia da paulistanidade. Ideologia que começou a ser gestada ainda no século 18 e gradativamente foi compondo o currículo escolar, de forma explícita ou oculta, inculcando nos alunos a ideia de que o povo paulista, personificado nos bandeirantes, é “construtor das amplas fronteiras do território e mantenedor da grandeza nacional”, bem como “a mistificação de que São Paulo é o Estado mais rico porque o seu povo é o que mais se dedica ao trabalho”.
Cresci acreditando nesse mito. Alimentando a imagem de São Paulo como a locomotiva da nação, forte, impávido, arrastando os demais estados, lentos e pesados, sinônimos do atraso. Não por acaso. Essa simbologia está no lema da dita Revolução Constitucionalista, “Non ducor, duco”, expressão em latim que significa “Não sou conduzido, conduzo”.
Só muito tempo depois, quando a pluralidade de concepções e conhecimentos voltou a ocupar o ambiente escolar, já com a ditadura militar agonizando, fui descobrir que os bandeirantes nada tinham de heróis. Não passavam de mercenários. Usavam de violência extremada, saqueavam aldeias, praticavam estupros, capturavam e escravizavam indígenas e caçavam pedras preciosas.
Nessa escola que se fazia plural e reflexiva, também comecei a entender que a chamada Revolução de 32 nada tinha de revolucionário. Pelo contrário, era um movimento conservador das elites paulistas, uma tentativa de recuperar o poder tomado por Getúlio Vargas em 1930. Claramente elitista e separatista, o movimento contou com o engajamento da mídia da época, o Estadão à frente, para aliciar e insuflar as camadas populares contra o governo central.
Até 1930, os barões do café, junto com os fazendeiros produtores de leite mineiros, controlavam a economia e a política do país. Paulistas e mineiros ocupavam alternadamente a presidência da República para garantir os interesses da aristocracia café-com-leite. Em 1929, o paulista Washington Luís, deu uma rasteira nos mineiros indicando o também paulista Júlio Prestes para sucedê-lo na presidência. Um golpe! De elite contra elite, mas um golpe.
Júlio Prestes ganhou mas não levou. Nem posse tomou. Mineiros, gaúchos e paraibanos, apontando fraude nas eleições, se rebelaram e, com apoio do Exército, conduziram Vargas ao governo. Um dos vários golpes militares de nossa história republicana.
Além da perda do domínio político, a elite branca paulista passa a assistir, então, à estruturação de uma legislação trabalhista pelo governo Vargas. E começou a tramar um movimento armado para derrubar o que chamava de ditadura. Uma tentativa de golpe contra o golpe militar que barrou o outro golpe. Tudo disfarçado de defesa da democracia, da legalidade e por uma nova Constituição.
Pouco se sabe dos quatro jovens mortos naquele 23 de março de 1932. Penso que não eram muito diferente da massa elitista, preconceituosa e intolerante que ocupou as ruas da capital paulista no início deste ano, uniformizados de verde e amarelo, pedindo a volta da ditadura militar, incensando o fascista Bolsonaro, exigindo o fim do governo popular da presidenta Dilma que, em continuidade aos governos do presidente Lula, promoveram inclusão e avanço nas políticas e direitos sociais sem precedentes. Tudo isso disfarçado de defesa da democracia e de combate à corrupção.
Noutras palavras, mais um golpe! Agora contra a vontade de 54,5 milhões de brasileiros, expressa nas urnas. Mais um movimento confessadamente elitista e separatista, insuflado pela mídia golpista e patrocinado pela Fiesp. Mais uma demonstração do despeito dessa elite branca que, mesmo considerando-se a locomotiva da nação e mantendo sua influencia sobre a economia e a política nacional, não conseguiu eleger um presidente paulista desde Washington Luís.
Muitas são as rimas possíveis. Para mim, entretanto, a que mais se aplica desde sempre aos paulistas é GOLPISTA. Mais atual do que nunca.
quarta-feira, 13 de julho de 2016
Cristofobia?
“As prostitutas vos precederão no Reino de Deus”
(Jesus
Cristo, in Mt 21, 31)
Religião não se discute. Cresci ouvindo esse bordão. Até de quem se diz sem religião. Mas creio ser a religião um dos temas mais debatidos em todos os tempos. E não apenas pelos teólogos. Personalidades que inscreveram seus nomes na história da política, da filosofia, das ciências, das artes expressaram reflexões provocadoras e inquietantes sobre o assunto, em linhas às vezes convergentes, em outras paralelas, sem pontos em comum.
Talvez a frase do filósofo alemão Karl Marx, “a religião é ópio do povo”, seja a mais conhecida e usada. Embora em campo radicalmente oposto, o imperador francês Napoleão Bonaparte convergiu com Marx ao afirmar que “religião é aquilo que impede os pobres de matarem os ricos”, talvez porque, pensando como o escritor francês Stendhal, “todas as religiões são fundadas sobre o temor de muitos e a esperteza de poucos”. O matemático e filósofo inglês Thomas Hobbes até especula sobre tais temores, atribuindo-os aos “poderes invisíveis, inventados ou imaginados a partir de relatos”.
Tais posições, entretanto, não são unânimes. Para o líder pacifista indiano Mahatma Gandhi “uma vida sem religião é como um barco sem leme”. Adepto do hinduísmo, Gandhi chegou a admitir a possibilidade de tornar-se cristão “se os cristãos o fossem vinte e quatro horas por dia”.
De minha parte, penso que religião de fato não se discute. Pratica-se. Cônscio de sua limitação e finitude, o homem busca na prática religiosa, no encontro com o Absoluto, princípio e autor da vida, a possibilidade de viver eterna e plenamente. Fatos recentes, porém, me puxaram para esse debate.
Tempos atrás não consegui me conter e publiquei um comentário sobre a troca de ofensas entre um conhecido jornalista e um desses pastores midiáticos, motivada pela performance da atriz transexual Viviany Beleboni na Parada Gay da capital paulista. Mesmo considerando deselegante e inadequada a resposta do jornalista ao pastor, destaquei que não havia nada de cristão na atitude de quem, em sua pregação, incita o ódio, a violência, o preconceito e a discriminação.
Bastou tal comentário para ser acusado, ainda que de forma velada, de cristofobia. Eu, cristão, cristofóbico? É, pode ser!
Thomas Merton, monge trapista do século 20, dizia que “todo homem se torna imagem do deus que adora”. Escolhi adorar o Deus da vida revelado ao mundo em Jesus. Não um Jesus qualquer, mas aquele Jesus histórico que encarnou a vida, as dores e o sofrimento de seu povo. Que teve (com)paixão, se aproximou e caminhou com aqueles que todos evitavam, os excluídos e marginalizados pela sociedade de então: as mulheres, inclusive as prostitutas, os publicanos, os pobres, os famintos, os deficientes, os enfermos, em especial os leprosos.
Aquele Jesus que não orientou sua vida por leis, normas ou regras, mas tão somente pelo amor. Amor incondicional consubstanciado no perdão sem limites, na tolerância e respeito às diversidades de gênero, religião, raça e classe, no serviço alegre e humanizante, no doar-se integralmente ao próximo. O Jesus que, assim vivendo, questionou de forma contundente os fundamentos de um sistema social opressor, violento, excludente e atentatório contra a vida.
O Jesus Cristo que, por assim viver, não morreu velhinho nem doente sobre uma cama, mas ainda jovem foi barbaramente torturado e assassinado, que sangrou até a exaustão numa cruz, condenado pelos donos do poder com apoio de uma turba insana. Aliás, uma turba muito parecida com certos cristãos que hoje clamam pela pena de morte e a redução da maioridade penal, que se regozijam com a desgraça alheia e que disseminam ódio e intolerância.
Certamente o cristo dessa turba é outro, pintado conforme os interesses e as conveniências de cada igrejola ou cada “fiel”. A esse pseudo cristianismo, de fato, tenho aversão.
(Publicado originalmente no Varal de Notícias em 08/07/2015)
sexta-feira, 1 de julho de 2016
São de Assis e perfeito de Assis!
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São de Assis e perfeito de Assis |
E foi assim que frei Rafael passou a ter uma predileção especial por nós e revelou-se uma pessoal extremamente dócil e amável. Mas nem por isso deixava de ser sincero. Nunca teve meias palavras, sempre dizia o que pensava com todas as letras, de forma direta, honesta e objetiva.
Essas poucas horas matinais que passávamos juntos nos domingos eram de grande aprendizado, por isso senti muito quando foi transferido de Penápolis.
Voltei a encontrá-lo em Piracicaba em 1996. Fomos, eu e a Marilda, visitar o amigo frei Carlos no Seminário São Fidélis e ele nos levou até o Convento Sagrado Coração de Jesus. Cruzamos com frei Rafael nos corredores. Foi muito afetuoso.
Quando Carlos lhe contou que a Marilda estava grávida, estampou um largo sorriso, tocou em sua barriga e perguntou: é menino ou menina? Como a Marilda respondeu que ainda não sabíamos o sexo, ele completou: “Não importa, que venha “são” de Assis e “perfeito” de Assis. Foi a última vez que o vimos antes de sua morte ocorrida em setembro de 1997.
No ônibus, voltando para casa, estava absorto, pensando nas palavras do frei, quando a Marilda interrompeu meus pensamentos. “Alguma vez você pensou em colocar o nome de Francisco no nosso bebê”?
Incrível! Era exatamente isso que estava pensando. A conversa com frei Rafael produzira em mim e na Marilda a mesma reação. E naquele momento tomamos a decisão: se for menino será Francisco de Assis, se for menina daremos o nome de Clara de Assis. Com a fé e a certeza de que, menino ou menina, viria são e perfeito.
Fé e certeza confirmadas no dia 15 de agosto de 1996, com o nascimento de um garoto saudável, tranquilo, perfeito: Francisco de Assis. Realização de um sonho, quase uma utopia. Foram nove longos anos de espera, sofrimento, frustrações, desesperanças e até incredulidade. Mas, contra tudo isso, os planos de Deus falaram mais alto e o Francisco veio dar um sentido novo, um novo sabor à nossa vida.
No seu Batismo, frei Carlos lembrou a “profecia” do frei Rafael, meses antes, dando graças a Deus pela saúde e a perfeição do Francisco. E nos revelou: Rafael significa Deus Cura!
(Publicado originalmente no Facebook em 04/11/12)
sábado, 25 de junho de 2016
O tempo de Deus

Mas a fé nunca tornou fáceis as coisas para Abraão. Já idoso, com a esposa Sara também velha e estéril, Abraão por várias vezes duvidou da promessa de Deus. Nem por isso deixou de ser o homem da fé.
Por sugestão de Sara, Abraão também tentou apressar a realização da promessa, usando o subterfúgio de procriar com uma escrava de Sara. Agar deu-lhe um filho, Ismael, que legalmente era seu herdeiro legítimo. Mas esse não era o caminho do Absoluto. Nem o seu tempo. Quando todas as esperanças já tinham acabado, eis que Sara concebeu e deu à luz Isaac, o herdeiro prometido.
A história de Abraão me veio à cabeça assim que ouvi o desabafo da Marilda naqueles primeiros dias de novembro de 1995. “Olha aqui, João Martins, você pode ter um filho com quem você quiser, porque eu desisti. Chega!”
O desespero não era sem razão. Uma gravidez tubária, em 1988, já lhe custara uma trompa, reduzindo pela metade a possibilidade de uma nova concepção. Depois a decepção de um filho natimorto, em 1991. Agora, quando a esperança tinha renascido após um tratamento natural que eliminou um cisto ovariano de grandes proporções, vem uma gestação anembrionária.
Nunca tínhamos ouvido falar disso, mas o médico, o mesmo dr. Décio Feola, explicou direitinho depois de repetir exames e ultrassons. O óvulo foi fecundado, implantou-se no útero, mas o embrião não se desenvolveu. É o chamado ovo cego. Só restava a alternativa de mais uma curetagem que, se não me falha a memória, foi feita no dia 7 de novembro.
A Marilda, tanto quanto eu, sonhava com uma descendência. Já tínhamos a Juliana, que amei desde a concepção e adotei como filha tão logo perdeu o pai. Mas desejávamos um filho que fosse fruto do nosso grande amor.
Ao longo daqueles oito anos de vida comum e de tantas tentativas frustradas, de tantas buscas, chegamos a pensar na adoção e até numa fertilização artificial. Mas assim como aconteceu com Abraão, algo nos dizia que esse não era o projeto de Deus para nossas vidas.
Veio o tratamento natural e a chama reacendeu em nossos corações, uma alegria incontida explodindo no corpo e na alma. Mas bastou o primeiro ultrassom para tudo isso ser substituído pela angústia, a incerteza, a tristeza. E, então, em seu desespero, assim como fez Sara, Marilda me sugere procurar minha descendência como bem entendesse, desde que a poupasse de uma nova dor.
Fiquei chocado, mas entendi aflição e apenas me calei. Até minha solidariedade a machucava naquele momento. Tão ferida estava, que não conseguia distinguir compaixão de comiseração.
E foi no meio dessa angústia que brigamos muito com Deus. Cada um de seu jeito, mas brigamos. Queria apenas entender as razões de tanta dor, na ilusão de que isso pudesse amenizar o sofrimento. Mas nenhuma resposta, nenhum sinal. O Absoluto continuava ali, impassível, mudo.
Feita a curetagem, Dr. Décio foi taxativo: nada de sexo por quarenta dias, tempo necessário para a recuperação do útero. Mas no meio dessa tormenta e de outras que se sucederam naqueles dias, acabamos esquecendo da recomendação.
Resultado: nova gravidez e uma reprimenda do dr. Décio que temia por um novo aborto, considerando que o útero ainda não estava totalmente recuperado para acolher o embrião. Novamente a incerteza, a angústia, o medo se apossaram de nossas vidas. E foram esses ingredientes que rechearam nosso Natal naquele ano, em Penápolis. Família reunida, muitos pratos apetitosos, confraternização… Mas o pensamento teimava em voltar para o enorme ponto de interrogação que representava aquele feto que a Marilda trazia em seu ventre.
Voltamos para casa no início de janeiro e com o coração na mão, fomos fazer o ultrassom pedido pelo dr. Décio. O gel sobre a barriga, o aparelho começa a deslizar e as imagens vão se sucedendo no monitor. Não foram gravadas em DVD porque ainda não existia nem em VHS porque não levamos. Por puro medo. Mas estão gravadas até hoje na memória.
Todos riem quando digo isso, mas juro que vi, no auge da emoção, um minúsculo serzinho acenando para mim com a mãozinha ainda mais minúscula. E nesse momento sublime cresceu dentro de mim a convicção de que finalmente o projeto de Deus para nossa vida estava se realizando. E de fato se realizou meses depois com a chegada do Francisco, nosso primogênito.
(Publicado originalmente no Facebook em 02/11/12)
domingo, 19 de junho de 2016
Te amaremos sempre!
"Meu bem, acho que está na hora!"
A voz agoniada e dolorida da Marilda Martins, vindo do quarto me chamou à realidade. No quintal, enquanto amarrava com arame recozido as armações de ferro estrivado, estava absorto em sonhos e pensamentos. Pensava nas vigas e colunas de concreto que resultariam daquelas gaiolas de ferro, sonhava com as paredes da casa subindo... E sonhava com o bebê que estava para chegar, que viria para alegrar ainda mais nossas vidas.
Parei na hora o trabalho e liguei para meu irmão Camilo, pedindo que nos levasse para a maternidade. O trajeto até o hospital Samam, em Americana, foi recheado de uma alegre expectativa. O Camilo nos deixou no hospital e ficou de voltar mais tarde.
Como as contrações ficavam cada vez mais frequentes e fortes, a enfermeira deu jeito de apressar o atendimento. Entramos no consultório e fomos recebidos pela saudação costumeira do dr. Décio: "Oi, Deolinda!"
Após um rápido exame, o médico pediu à enfermeira que conduzisse a Marilda até a sala de parto. Levantei-me para também deixar o consultório, mas dr. Décio, indicando a cadeira, ordenou: "Sente-se um pouco". E com a objetividade que sempre lhe foi peculiar sentenciou: "Queira Deus que eu esteja enganado, mas acho que o bebê está em óbito".
Fiquei chocado. Apenas balancei a cabeça, em negativa, quando ele me questionou se a Marilda desconfiava de algo. Nem sei como levantei-me daquela cadeira e subi as escadas até o terceiro andar. A cabeça girava a mil quilômetros por hora. Só então entendi o desespero do dr. Décio tentando sem sucesso ouvir os batimentos cardíacos do bebê e cobrando da enfermeira a troca das pilhas do aparelho.
Um enorme vazio se apossou de todo o meu ser, o olhar perdido. E a espera angustiante por uma notícia, nutrindo uma enorme esperança de que uma porta se abrisse e o dr. Décio aparecesse com um bebê chorando em seu colo. Mas nada! Só olhares de piedade das enfermeiras e atendentes.
Não sei quanto tempo transcorreu, mas para mim foi uma eternidade. Quando, finalmente, uma porta se abriu, o dr. Décio saiu. Estava sereno como sempre. Ao ver-me, perguntou se alguém já tinha dado alguma informação. Respondi que não e ele, sem rodeios, deu a notícia: "Era um menino. Já devia estar em óbito há alguns dias. A Deolinda está bem e você já pode vê-la".
O chão sumiu sob meus pés. O desespero apossou-se de mim. Nesse momento entraram pelo corredor meus irmãos Camilo e Joaquim. Chegavam alegres pelo nascimento de mais um sobrinho sem sequer imaginar que era um natimorto.
Entrei no quarto e encontrei a Marilda com olhar vago, distante... No abraço do reencontro apenas choramos copiosamente. Meu irmão Joaquim foi quem me trouxe à realidade desta vez: "Precisamos providenciar o funeral".
Dividido, sai com o Joaquim e fomos à Funerária Bom Pastor, que ficava na rua Tamoio, próximo ao jornal O Liberal. Após preencher vários papéis, o funcionário levou-nos a uma sala para escolher o caixãozinho. Desabei de novo. Passei longos meses imaginando o momento de sair da maternidade para comprar uma roupinha para meu bebê, pois não sabíamos até então se seria menino ou menina. E agora estava ali, comprando não uma roupa, mas uma urna funerária.
Pedi a meu irmão que resolvesse a situação e saí, pra chorar, uma dor incalculável corroendo meu coração. Dali retornei ao hospital Samam para ficar com a Marilda. Foi, talvez, a pior noite da nossa vida.
Exatamente hoje ele faria 21 anos. Só vi seu rostinho por alguns minutos, antes de ser enterrado, mas a imagem continua muito viva em minha mente, os lábios rosados, o cabelinho liso... Como também continua viva a lembrança de meu pai me esperando no portão da Matriz Nossa Ssenhora Dores, onde acontecia o velório, os olhos marejados de lágrimas. Não disse nenhuma palavra, apenas um abraço forte que revelou toda a ternura e a enorme compaixão paternal.
"Te amaremos sempre", é a inscrição que colocamos sobre a sepultura de nosso bebê natimorto, uma frase simples, que saiu de nossos corações naquele momento de dor, de comoção até, mas que a cada dia revela-se profunda, cheia de sentido, verdade irrefutável até o último dia de nossas vidas. Te amaremos sempre, anjinho querido.
(Publicado originalmente no Facebook em 17/10/12)
Um amigo especial
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Nick Prince |
E me lembro da manhã em que ele foi atropelado por um caminhão na estrada do bairro Lagoa da Mata, onde morávamos. Eu devia ter quatro ou cinco anos.
E me lembro que senti muita raiva, talvez até um ódio infantil, daquele motorista que matou meu cachorrinho. Chorando compulsivamente, eu cutucava seu corpo inerte com uma pequena vara, querendo que ele se levantasse e voltasse a correr e brincar. Foi minha primeira grande perda.
Para tentar compensá-la vieram o Leão e o Feroz. O Leão já veio grande, de presente de minha tia Nena. Era grande e gordo, cotó, mas extremamente dócil com todos de casa. Parceiro das brincadeiras. O Feroz ganhou merecidamente o nome porque era muito bravo. Os dois formaram uma dupla muito especial. Amigos, parceiros.
Nos acompanharam por muitos anos enquanto moramos no sítio. Quando mudamos para a cidade não se adaptaram ao novo estilo de vida e logo se foram.
Cresci, fiquei adolescente, jovem, adulto. E também cresceu dentro de mim a convicção de não possuir animais. De início era apenas uma tentativa de evitar a dor de novas perdas. Com o tempo aprendi, especialmente com São Francisco de Assis, que animais não foram criados para serem possuídos.
O pobrezinho de Assis tinha predileção por todas as formas de vida, a ponto de retirar os insetos e os vermezinhos do caminho para que não fossem esmagados por algum viajante distraído. Amor à vida, independente de sua forma.
Mas ainda chegamos a ter uma cadelinha vira-poodle, a Fofa, presente dado à Juliana Lima Lacerda quando fez três aninhos. Inteligente, fiel, obediente, conviveu conosco por longos 14 anos. Morreu velhinha, deitada na nossa varanda, olhando para dentro de casa. Outra perda e a convicção mais forte de que os animais são criados para a liberdade.
Mais recentemente, quando me converti ao vegetarianismo, aprendi a ver os animais como parceiros de nossa existência, sujeitos portadores de direitos como nós, criaturas nem mais nem menos importantes que os humanos.
É essa convicção que me levou a combater o assassinato de animais para transformá-los em alimentos. Não pode gerar vida nem saúde o alimento fruto de uma violência e de um assassinato. Foi essa mesma convicção que me levou a combater a escravização dos animais, seja para usá-los como alimento, seja para servirem de instrumentos de nossa diversão e lazer.
Essa mesma convicção me levou a opor-me à ideia de aceitar um filhotinho oferecido de presente por uma colega de trabalho da Marilda Martins. Escravidão, jamais! Mas fui voto vencido e o Nick veio para nossa casa. Com toda a bela feiura de um bebê yorkshire.
Era um pirralho atrevido. Vivia atormentando a Tatá, nossa tartaruga, com seu latido estridente e ameaçando morder suas patas e cabeça. Acho que se divertia em ver a tartaruga recolher-se rapidamente no seu casco. Com o tempo se acostumou e parou de importunar a Tatá. Ou então entendeu minhas advertências de que a tartaruga era mais velha de casa e merecia ser respeitada.
Logo conquistou o carinho e o respeito de todos de casa. E dos amigos da casa. Tornou-se meu amiguinho, parceiro de brincadeiras diárias. Todas as tardes me esperava no portão, segurando entre os dentes seu brinquedo preferido, um Pluto de pelúcia todo rasgado pelos dentinhos afiados. Mal me via e soltava o brinquedo, numa provocação matreira, esperando que eu fizesse menção de pegá-lo. Aí agarrava de novo o bichinho e saía correndo, saltitante de alegria.
Conseguiu me mostrar que, mesmo “aprisionado” em nossa casa, não queria e não se sentia nosso escravo. Queria e se sentia nosso amigo.
Hoje, quando cheguei do trabalho, não o encontrei me esperando no portão. Vizinhos e amigos velavam seu corpinho frágil e ensanguentado, coberto por um jornal. Não o toquei com uma varinha tentando reanimá-lo, como fiz há 43 anos com o Bobi. A maturidade mata as ilusões infantis. Não quis vê-lo morto nem saber detalhes do seu atropelamento. Apenas senti no fundo da alma a perda de meu amiguinho.
Agora, enquanto escrevo, sinto a falta de seu longo pelo se enroscando em meus pés, sua língua me lambendo carinhosamente, seu corpo se contorcendo no chão até encostar nos meus pés, à espera de um cafuné, seus dentinhos dando mordidelas nas pontas de meus dedos, chamando para a brincadeira.
Adeus, Nick! Ou, quem sabe, se os animais também tiverem seu cantinho no céu, até qualquer dia desses, quando nos encontraremos todos: Bobi, Leão, Feroz, Fofa, Nick e eu. E juntos faremos da verde e florida relva (é assim que imagino o céu) nosso campo de eternas brincadeiras.
(Publicado originalmente no Facebook em 06/09/2012)
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