segunda-feira, 30 de maio de 2016

Esqueceram de nós

Bolo e guaraná, um luxo de festa
Após sete longos meses, 169 correspondências trocadas, dezenas de planos feitos e refeitos, finalmente chegou o grande dia: 16 de janeiro de 1987. 

Nos casamos numa sexta-feira à tarde, primeiro no Cartório do Registro Civil, que ficava na avenida Expedicionário Diogo Garcia Martins, depois a cerimônia religiosa no Santuário São Francisco de Assis. 

Saiu tudo como planejamos ao longo dos meses: muito simples e autêntico. Entramos pelo corredor central do Santuário de mãos dadas, ao som de "A noite do meu bem", na voz do amigo Geraldo Malta, e esperamos no altar pelo frei Nelson Berto. Nada de terno e vestido de noiva, nada de pompa. Apenas muito amor e um desejo louco de sacramentar nossa união. 

Os irmãos, sobrinhos, familiares mais próximos e alguns poucos amigos testemunharam. Minha cunhada Marina Galinari nos presenteou com uma confraternização em sua casa, regada a salgadinhos e guaraná. Um luxo! Ah, e o bolo da confeitaria Delícia, claro. 

Xavier, João Luis, Geraldo, José Luís... Os amigos que nos acompanharam naquele momento especial e que nos acompanham até hoje. Após a singela festa passamos a noite no Hotel Bradesco, na avenida Luis Osório, onde hoje está a Casas Bahia. Nossa noite de núpcias. Maravilhosa concretização de um sonho que construímos alicerçado sobre o projeto divino para nossas vidas. 

Não foram poucas as dificuldades superadas até chegarmos ao casamento. A começar pela data. Queríamos abreviar o máximo o tempo de separação, pois de grande bastava a distância que nos separava. 

Quando procuramos o cartório, no final de setembro, para iniciar o processo, a má notícia: o casamento só poderia acontecer depois de um ano de viuvez da Marilda. Foi o que nos disse o Rubens de Calasans, que nos recebeu em sua casa num domingo à tarde, já que eu só podia viajar a Penápolis nos finais de semana. Fazer o que? Esperar! 

Pelo menos assim ela pôde concluir o último ano do Magistério na Oceu, garantindo uma nova profissão no início de sua nova vida. O Calasans foi muito cordial e gentil conosco. Coisas de tabelião de cidade interiorana, mas também porque surpreendeu-se ao ver na minha certidão de nascimento o nome de um amigo seu, o "Galo mais Conrado" que já conhecera, meu avô materno. 

Ficou tão contente que até permitiu à Marilda tirar um dos sobrenomes. Ela queria tirar o prenome Deolinda, ele sorriu e não autorizou. Então saiu o Barbosa e entrou o Martins. 

Um fato pitoresco do nosso casamento foi a notícia que recebemos no domingo à tarde, quando meus pais passaram na casa da dona Júlia para se despedirem. Disseram que o tio Hermes havia promovido um churrasco em nossa homenagem, no dia anterior, e que toda a família ficou, em vão, nos esperando. Por uma simples razão: esqueceram de nos avisar.

(Publicado originalmente no Facebook em 12/04/12)

Pombo correio

Xavier, nosso pombo correio
216 dias. Esse foi o tempo entre o início do namoro e o nosso casamento. Mas pareceu uma eternidade. 

A distância nos massacrava, pois o máximo que conseguíamos era nos encontrar a cada 15 dias quando eu ia para Penápolis ou a Marilda viajava para Nova Odessa. Contávamos os dias, as horas, os minutos que nos separavam de cada encontro. E quando eles aconteciam, o tempo voava rápido. 

Nem eu nem a Marilda tínhamos telefone, por isso só conseguíamos nos falar usando o orelhão da praça. Da praça José Gazzetta, em Nova Odessa, eu ligava para a casa da minha cunhada Marina nos sábados ou domingos à noite, as fichas de DDD caindo rápido e a última cortando nossa conversa pela metade. 

A Marilda, da praça Carlos Sampaio Filho, em Penápolis, ligava para a redação do jornal O Liberal, todas as quartas-feiras à noite, onde eu ficava de plantão, mesmo que já tivesse acabado de redigir as matérias do dia. 

O que aliviava mesmo nosso "sofrimento" eram as cartas. Eu passava as manhãs na frente de minha casa esperando pelo carteiro. E era tomado de decepção quando ele passava direto sem deixar nenhuma correspondência. Decepção e revolta, pois sabia que a Marilda me escrevia todos os dias. 

Mas quando o carteiro parava, me premiava com quatro ou cinco cartas de uma vez. E eu as devorava de imediato, antes de sair para o trabalho. Depois, à noite, relia cada uma, saboreando cada palavra, rindo, chorando, me emocionando, me entristecendo, me alegrando... E respondia a cada uma das cartas, escrevendo até madrugada alta, muitas vezes adormecendo em cima do aerograma.

A Marilda tinha mais sorte. As minhas cartas também atrasavam, mas ela contava com um carteiro especial que lhe entregava cada correspondência minha assim que chegavam a agência dos Correios. Era meu amigo Xavier que logo se tornou amigo da Marilda também e que até hoje continua nosso amigo: meu, da Marilda e dos nossos filhos. 

Conheci o Xavier quando ele era seminarista capuchinho em Birigui. Depois foi para o Convento Santa Clara, em Taubaté, e retornou para Penápolis para um tempo de reflexão, para certificar-se de sua vocação. Foi quando nos tornamos amigos, participando da Juventude Franciscana. Meu melhor amigo. 

Fui testemunha de sua dedicação, de seu esforço sobre-humano para superar as dificuldades da época. Levantava de madrugada para embarcar nos precários ônibus dos gatos e enfrentar, sob o sol escaldante, o corte da cana, voltando exausto e preto de fuligem no final do dia. 

Foi assim, como cortador de cana, bóia-fria, que conseguiu manter-se e pagar a faculdade, antes de passar no concurso dos Correios. A vida difícil nunca tirou seu bom humor e sua irreverência. 

Saíamos das reuniões da Jufra, nas noites de sábado e passávamos, eu, ele e o Marcos Belussi, na sorveteria Signorina, na esquina da avenida Luís Osório com a rua Mário Sabino. Enquanto esperávamos o sundae, a vaca preta ou a banana split, o Xavier pedia uma bola de sorvete na casquinha e três pazinhas e ficávamos os três ao redor da mesa saboreando aquele momento. 

Houve uma vez, porém, que uma de suas brincadeiras irreverentes nos encheu de pavor. Saímos da sorveteria já tarde da noite, cortamos pela estação ferroviária e quando chegamos na pequena ponte de pedestres que havia sobre o Córrego Maria Chica, na altura da rua Ceará, avistamos um casal namorando numa kombi. 

Foi quando o Xavier disparou uma pergunta típica de garçom de lanchonete: "Vai comer ou vai embrulhar?" O sujeito da kombi virou o bicho e queria nos pegar de qualquer jeito. Atravessamos correndo a ponte e continuamos em disparada rua Ceará acima. 

O sujeito não desistiu: ligou a kombi, deu a volta na rua Amazonas e veio em nosso encalço. Surpreendeu-me quase perto da praça da Vila América e, esbravejando, queria por toda lei saber onde estava o Xavier. Respondi que não sabia, ele seguiu procurando e eu tratei de correr para minha casa, na esquina da rua Maranhão com a rua Goiás. 

Só na manhã seguinte, na missa das 8h30, fiquei sabendo do desfecho da história. O Xavier foi flagrado pelo cara da kombi quando chegou à pracinha da Vila América. Alucinado, o rapaz subiu com o veículo na calçada e avançou pelos passeios da praça. 

Foi quando o Xavier pegou do chão uma pedra e alertou: "Se não parar agora eu jogo". Como o perseguidor não parou, teve o parabrisa de sua velha kombi destruído por uma bela pedrada. Rimos muito ouvindo essa narrativa, imaginando como é que o sujeito explicou o vidro quebrado ao chegar em sua casa.

(Publicado originalmente no Facebook em 07/04/12)

Dom Walter, o bispo amigo

Encontro do Cursilho em Araçatuba
"Decolores! Decolores é a primavera florindo caminhos. Decolores são todas as flores são os passarinhos. Decolores é o arco-íris, caminho de luz". 

Quase um hino oficial do Movimento Cursilhos de Cristandade, Decolores expressa bem a própria essência e a metodologia utilizada pelo movimento no seu trabalho de "evangelização". 

Uso do testemunho pessoal, forte impacto emocional sobre os cursilhistas, pouca ou nenhuma abordagem da dimensão social do Evangelho, busca de "cura" para os problemas pessoais pela conversão pessoal, sem se atentar para os fatores sociais, políticos e econômicos determinantes do comportamento humano. 

O Cursilho, como os demais movimentos eclesiais característicos dos anos 60 e 70, enfocava um espiritualismo que levava as pessoas a fecharem-se dentro do próprio movimento, alienando-se da realidade social em que viviam. 

Os encontros tinham uma lógica própria, desencadeada pelas palestras (matracas ou marretas): chorou, gostou, ficou. Nem sempre por muito tempo. A maioria desligava-se novamente do movimento e da Igreja tão logo passava a euforia e empolgação do encontro. 

Tive minha experiência com esse modelo de Igreja ao fazer o encontro da JAM - Juventude de Ação Mariana. Não chorei, não gostei e não fiquei. Parti para uma experiência de pastoral mais articulada com os princípios da Igreja primitiva, retomados pelo Concílio Vaticano II. 

Por isso fui tomado pela surpresa quando a Marilda me anunciou, poucos dias após o início de nosso namoro, que participaria do encontro dos Cursilhos, na Casa São Paulo em Araçatuba. Foi convidada pelo seu patrão, o Pedro Campos, dono do Jornal Interior. Esse, aliás, era outro aspecto que me deixava intrigado nos movimentos de encontros da Igreja Católica: patrões e empregados convivendo harmonicamente nos encontros como se não houvesse uma relação de dominação e exploração nos seus cotidianos. 

Mas evitei emitir qualquer opinião sobre o assunto, deixando que a própria Marilda pudesse formar sua opinião em relação ao Cursilho. Ela gostou. Mas não chorou nem ficou. Não entendia a razão de tantas lágrimas derramadas pelos encontristas a cada matraca e ao final do cursilho. Mas aproveitou o momento de retiro para reorientar sua vida que fora virada de pernas para o ar nos seis meses anteriores. 

Trouxe, porém, uma preocupação do encontro. Numa conversa com o diretor espiritual do encontro, se não me falha a memória o padre Carmelo, falou de nossa história e foi informada que nossa condição de compadres criava laços familiares e que, portanto, nossa união só seria possível com autorização do bispo diocesano. Foi a primeira dificuldade que enfrentamos. Quase um balde de água fria na nossa ardente paixão. 

Voltando do Cursilho, no dia 22 de junho de 1986, a Marilda me expôs essa preocupação quando lhe liguei na casa da Marina, sua irmã. Que seja assim, então. Vamos falar com o Bispo. Foi o que lhe respondi na hora. 

De imediato escrevi a dom Walter Bini, então Bispo Diocesano de Lins. O conheci no tempo que morei em Lins, ficamos amigos, nutrimos uma admiração e respeito mútuos. 

Cheguei a procurá-lo em meados de 1985 propondo que me enviasse como missionário leigo para trabalhar nas comunidades nordestinas. Ele questionou se não me interessava integrar o clero diocesano, já que desistira da vida religiosa. Respondi que não e reafirmei a disposição para o trabalho missionário como leigo. Ele, então, disse que a Diocese de Lins não tinha nenhuma ação desse tipo, mas me encaminhou ao Leme, um grupo de missionários leigos, telefonando na hora à coordenação e indicando meu nome.

Essa amizade com dom Walter me deixava confiante de que autorizaria meu casamento com minha comadre. Esperei com muita ansiedade por sua resposta até o final de julho. E quando chegou, a carta fez estampar um largo sorriso em meu rosto. Dom Walter dizia que o padre estava desatualizado e que não havia no novo Código de Direito Canônico qualquer impedimento à nossa união conjugal. 

Não tínhamos qualquer dúvida de que nossa união, fruto do Amor, era já abençoada pelo Deus Amor desde o início. Mas a mensagem de dom Walter nos deixou mais convictos de que o Amor seria para sempre a força que precisaríamos para enfrentar e vencer as barreiras. 

A Marilda não chegou a conhecer dom Walter, que faleceu pouco tempo depois num acidente automobilístico, junto com o Padre Geraldo Saleme. Mas até hoje nutre por ele grande carinho, assim como eu, pelas bençãos que intercedeu junto a Deus para nossas vidas.

(Publicado originalmente no Facebook em 01/04/12)

Amostra grátis

Amizade a toda prova
"Aos capuchinhos, que voltem ao espírito originário de São Francisco de Assis. Um espírito de solidariedade efetiva e terna para com os pobres. Uma coragem de tentar o novo junto ao povo. Que façam dele o padrinho de sua opção fundamental pelos pobres, contra sua pobreza e por sua libertação integral". 

Emoldurada pela rústica parede do barraco, no meio da favela, a dedicatória acima, de autoria do teólogo Leonardo Boff, calou fundo no meu coração e ficou gravada em minha mente. As palavras do então frei Leonardo resumiam com perfeita exatidão o que eu via com meus próprios olhos naquela casa. 

Junto com outros companheiros, meu amigo frei Carlos Silva assumira a opção de total despojamento e pobreza, movido pela "paixão pelo Jesus pobre e a paixão pelos pobres", usando mais uma vez as palavras de Leonardo Boff. 

Construindo seu barraco e morando ali no centro daquela favela, em Piracicaba, superou a cômoda posição de quem apenas faz caridade para pobres, passando a viver com eles e como eles. Seminarista capuchinho, abriu mão de morar no conforto do Seminário São Fidélis para fazer a experiência concreta da pobreza, partilhando com o povo pobre da favela as suas dores e angústias, celebrando suas conquistas e esperanças. 

Trabalhava o dia todo como operário, estudava à noite e nos momentos livres dedicava-se ao trabalho pastoral na favela. Visitei várias vezes aquele singelo barraco que em pouco tempo se tornou a referência para todos as famílias da favela. Se alguém precisava de um curativo, era lá que procurava. Um colchão, uma caneca de arroz, remédio... 

Da pobreza partilhada transbordava a abundância de bens e dons. Passar ali uma tarde de domingo era experimentar uma pequena amostra grátis do Reino. No íntimo de meu ser sentia uma santa inveja de meu amigo. Inveja por não ter a mesma coragem que ele teve, a mesma disponibilidade, o mesmo comprometimento. 

Tenho absoluta certeza de que nossa amizade, nascida na militância na Pastoral da Juventude diocesana de Lins, se solidificou ali, nas poucas visitas que fiz àquela favela, alimentada pelo espírito franciscano original. Amizade que se expandiu para minha família, que criou laços fraternos e familiares, que ultrapassou fronteiras e resistiu aos 9 mil quilômetros que nos separam desde que partiu em missão para o México.

(Publicado originalmente no Facebook em 29/03/12)

O essencial é invisível aos olhos

Única para mim
"Querida Marilda, há dias que tento "enxergar" o que ocorre entre nós dois. Foi um pouco difícil, porque fazia isso com os olhos. E o essencial é invisível aos olhos. Só podemos ver bem com o coração, é a lição de Exupery. Percebo agora, que você me cativou. De ora em diante, eu serei para você único no mundo, e você será única para mim. Como a raposa ao Petit Prince, posso dizer a você: 'minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. Os teus me chamarão para fora da toca, como se fosse música'. Te amo muito. Que este seja um sacramento". 

Com essa dedicatória inscrita na primeira página do livro Pequeno Príncipe, dirigi-me ao Jornal Interior, onde ela ainda trabalhava, naquela manhã de sábado, 14 de junho de 1986. Tinha viajado a noite toda, mas a ansiedade afastava todo o sono. A felicidade era imensa, o peito era pequeno para conter o coração, que batia disparado, de forma intensa. 

A cada passo, mil idéias e lembranças povoavam minha cabeça. Lembrei do dia em que comecei a questionar minha relação com a Marilda, enfrentando a tormenta que se instalara em minha vida por não conseguir encará-la mais como apenas uma amiga especial, uma irmã. Foi no início de abril. Sentia algo muito maior que uma simples amizade, mas não queria admitir essa hipótese. Passou o aniversário da Juliana e ambos tivemos, na despedida, uma sensação de perda. 

Passaram os dias, semanas... e a Marilda não me saía do pensamento. Convidado pelo Xavier, viajei a Lins em 17 de maio para participar de um encontro com o teólogo Clodovis Boff, à época um dos expoentes da Teologia da Libertação, ao lado de seu irmão Leonardo. 

É claro que queria muito conhecer o Clodovis, beber de sua mística, saciar-me de sua rica experiência pastoral, mas o que me animou mesmo a viajar foi a possibilidade de esticar até Penápolis no domingo à noite. 

E fui direto à casa da Marilda. Conversamos, matamos a saudade e, mais uma vez, fomos tomados pela estranha sensação de perda na hora da despedida. 

Foi ela que encheu-se de coragem e tomou a iniciativa de revelar o que sentia, em carta que me enviou. Li e reli cada palavra, tropeçando nas vírgulas e pontos, o coração saltando pela boca, lágrimas de emoção escorrendo pela face, uma incontida alegria invadindo todo o meu ser. 

E respondi na mesma hora a sua cartinha, revelando que tinha a mesma sensação e dizendo que tudo isso tinha apenas um nome: Amor. Só não sabia ainda em que proporção se manifestava tal amor que nos levava a uma sintonia de ideias, sentimentos, sensações e anseios. E dizia, também, da minha certeza de que um dia ainda conviveríamos juntos. 

Cartas foram, vieram, se cruzaram pelos caminhos e em cada uma aumentava a certeza desse amor que teimava em crescer nas nossas vidas. Agora estava eu ali, entrando no jornal, prestes a me encontrar com a Marilda. Como seria nossa reação? 

Entreguei-lhe o Pequeno Príncipe e senti sua emoção ao ler a dedicatória. Conversamos longamente ali mesmo no jornal, até o final do expediente. Depois, abraçadinhos, atravessamos a Vila Fátima e a Vila América até a casa do meu amigo Talo, onde estava hospedado. 

Subi à sua casa após o almoço, passamos a tarde juntos e com a nossa princesinha Juliana. À noite, coube-nos pajear a sobrinha Aline, já que a Márcia saíra e deixara a filha com a avó. Mas isso não nos abateu. Embalei a Ju em meu colo, cantando para que dormisse, enquanto ela fazia o mesmo com a Aline. 

Demorou. Devia ser quase onze da noite quando a Marilda finalmente saiu do quarto após colocar a Aline na cama. Eu, tímido e respeitador que era (aliás ainda sou), já estava de pé, à porta, com o agasalho na mão, pronto para ir embora. Ela me olhou e reclamou de pronto: "Tá pensando que vai me deixar aqui sozinha depois desse trabalhão todo? Nada disso!" 

Então puxou-me pela mão e começamos ali, trocando muitos beijos, carinhos e confidências, nossa linda história de amor que já se aproxima dos 26 anos.

(Publicado originalmente no Facebook em 22/03/12)

Educadora

Magistério/Oceu - Turma de 1986
Trabalhar o dia todo no Jornal Interior, chegar em casa no final da tarde e correr para a escola após um banho rápido, deixando a Juliana com a vó Júlia, chorando e chamando "mamã". 

Essa passou a ser a rotina da Marilda após a morte do Gilson. E ficar longe da Juliana todo o dia e também à noite levou-a a cogitar abandonar o último ano do Magistério na Oceu. 

Em março de 1986 ela me escreveu pedindo minha opinião, se deveria dar um tempo no curso para ficar com a Juju à noite, voltando a estudar apenas quando nossa princesinha estivesse maior. 

Foi muito difícil dar uma resposta. Concordava com ela que a Ju precisava como nunca de sua presença de mãe naquele momento. Por outro lado, abandonar os estudos representava selar um futuro de limitações e de eterna exploração naquele emprego. Concluir o magistério poderia abrir outros caminhos, outras possibilidades de trabalho e de vida. 

E foi assim, sem responder diretamente, que a incentivei a continuar estudando. Cheguei a escrever à Rosana, que tinha sido minha namorada e que era sua professora na Oceu, pedindo, quase implorando, que desse uma força à Marilda, que me ajudasse a convencê-la a continuar os estudos. 

Felizmente, apesar de toda dificuldade, superando todo sofrimento, ela continuou. Formou-se professora naquele ano e já no ano seguinte iniciou o exercício do magistério. Nessa foto, a Marilda se destaca, até pelo colorido de sua roupa, de suas colegas de classe.

Hoje, tendo acompanhado seus 25 anos de docência nos anos iniciais do ensino fundamental e também na condição de educador, posso afirmar sem qualquer sombra de dúvida que a Marilda continua se diferenciando e não é pela aparência nem pelo vestuário. Minha linda atingiu em sua carreira o auge da competência, do profissionalismo e do comprometimento, dignificando a profissão e sendo merecedora do título EDUCADORA.


(Publicado originalmente no Facebook em 19/03/12)

Padrinho

Foi a Juliana que me aproximou da Marilda
Desde criança sempre ouvi dizer que padrinho é o segundo pai. Mas só fui entender isso de fato quando a Juliana ficou órfã. Nem de longe imaginava isso quando pedi à Marilda para ser o padrinho de seu bebê. Aliás, nem sei o que me levou a tomar essa iniciativa, pois tantos outros amigo(as) tiveram filhos e nunca fiz pedido semelhante. 

O fato é que amei essa menina desde o momento que soube de sua concepção. E ao vê-la, de repente, sem o pai... Não passava um dia sequer sem lembrar-me dela, da dificuldade de crescer sem a figura paterna. 

Olhava meus sobrinhos e via a Juliana. Sentia-a como uma verdadeira filha, embora estivesse distante e sem condições de acompanhar sua vida diária e seu crescimento físico, intelectual, afetivo e espiritual. Por força das circunstâncias, me considerava um padrinho omisso e relapso. 

Tinha que me contentar com as novidades que a Marilda me contava nas cartas: o primeiro passinho, a primeira palavra... E ficava arrasado quando as notícias não eram agradáveis: as doenças, a ameaça de lhe tirarem a filha... 

Por isso, sempre que podia viajava a Penápolis para passar um tempo com a Ju e a Marilda, mesmo que fossem poucas horas. No seu primeiro aninho, em abril de 1986, passei o dia todo ajudando a Marilda e a tia Marina nos preparativos para a festa. E senti um orgulho muito grande ao ver a alegria de todos os convidados, familiares e amigos, na hora do parabéns. Era uma garotinha encantadora. 

Foi nessa data que senti algo muito forte me tocar, embora não soubesse ainda que o rumo da minha vida mudaria completamente dali para frente. Ao despedir-me da Marilda e da Juliana naquele 21 de abril, preparando-me para regressar a Nova Odessa, foi como se deixasse um pedaço de mim para trás. Mal cheguei na rodoviária e a saudade já apertava no peito, tornando aquela viagem muito angustiante. 

Demorou ainda algumas semanas para entender o que se passava. Foi a Juliana, com a sua graça, beleza e inocência quem me aproximou da Marilda. E me fez sentir, de fato, pai quando, em outubro daquele ano me enchia de beijos e dizia: "Bai".

(Publicado originalmente no Facebook em 17/03/12)

Compaixão

Da experiência da dor, pessoas novas surgiram
"A morte é sempre um mistério. O tempo passa e não conseguimos entendê-la. Aceitá-la, então, torna-se mais difícil quando ocorre em circunstâncias trágicas como foi no caso do Gilson. O dia 30 de dezembro ficará para sempre marcado. A Marilda viúva aos 21 anos. A Juliana orfã aos 9 meses".

Até hoje não tenho explicação do por que resolvi registrar em minha agenda, em forma de diário, os fatos e as reflexões do ano de 1986. E foi com esse comentário inicial que abri meu primeiro e único diário. A morte do Gilson me chocou profundamente, como nunca tinha acontecido antes. Não sei se por me ver um ator, embora coadjuvante, daquele drama ou se pela compaixão que brotou em meu peito e minhas entranhas. 

Com-paixão. Ao contrário da comiseração, da pena, que nos situam fora da dor alheia, geralmente em posição superior, a compaixão é o sentir com o outro, a mesma dor, o mesmo sofrimento, as mesmas preocupações. É colocar-se incondicionalmente ao lado do outro, com todo o seu ser. 

Ao longo dos dias, das semanas, dos meses que se sucederam ao trágico 30 de dezembro de 1985, não esquecia um instante sequer da dor que se instalou repentinamente nas vidas da Marilda e da Juliana. E isso também me doía muito. Afinal, a Marilda era (e continua sendo) minha melhor amiga, quase uma irmã. E pela Juliana, minha afilhada, nutria um sentimento paternal. 

Ancorado nos ensinamentos do teólogo Leonardo Boff, de que a solidariedade aplaina os abismos e exorciza todos os medos, procurava manter-me presente no cotidiano da Marilda e da Juliana, mesmo estando distante. Escrevia com frequência estimulando sua força, sua coragem e a esperança de que as feridas seriam cicatrizadas e permitiriam um futuro feliz. 

E, sobretudo, dialogava com Deus, no silêncio do meu quarto, solicitando do Absoluto a força necessária para que todos pudéssemos prosseguir a caminhada. Me angustiava muito quando alguma carta da Marilda revelava traços de depressão. A distância não me permitia outra atitude que não fosse escrever, compartilhando a dor e tentando encorajá-la. 

Desejava intensamente estar ao seu lado para ampará-la e prestar minha solidariedade. Assim fomos nos aproximando cada dia mais. A distância física continuava de 400 quilômetros, mas havia uma comunhão de espírito, de alma, de sentimentos, de corações... 

Compartilhar as dores da Marilda, por outro lado, me fez esquecer e superar as minhas próprias. Os dissabores familiares, as frustrações afetivas, os problemas profissionais... tudo isso não passava de uma gotinha d'água diante do oceano de sofrimento vivido pela minha comadre-amiga-irmã. 

Quando nos reencontramos pela primeira vez, em 15 de fevereiro de 1986, na casa de sua mãe, dona Júlia, para onde retornou logo após a morte do Gilson, éramos pessoas novas, mais maduros, imunizados na experiência da dor. E marcados pelas cicatrizes dos amores vividos, juntos sentenciamos: paixão, casamento, vida a dois? Nunca mais! 

Não tínhamos aprendido ainda, que nunca não existe no tempo de Deus.


(Publicado originalmente no Facebook em 14/03/12)

Feliz ano novo? Triste ano velho!

Composição da Fepasa, na estação de Bauru
Por volta de meia noite eu me dirigia à estação de Nova Odessa, onde dezenas de pessoas já aguardavam pelo trem de passageiros da Fepasa, que chegava às 0h20. Seguia até Americana onde esperava pelo outro trem, das 0h50, para seguir viagem até Bauru. 

Em época de festas ou feriados prolongados era quase impossível embarcar, pois os vagões já vinham lotados. Aí o jeito era achar um cantinho para se encostar e viajar de pé. Teve uma vez que fui obrigado a pular a janela para conseguir embarcar, tão grande era o número de passageiros que se aboletavam na escada do vagão. 

Chegava na estação de Bauru, retratada nesta foto, por volta das 6 da manhã, onde fazia baldeação para chegar a Penápolis às 9h20 no trem da Noroeste. Era assim a maioria das minhas viagens a Penápolis. A opção pelo trem ocorria por uma questão de economia, mas também porque nem sempre conseguia uma passagem de ônibus de última hora. 

Foi assim a minha viagem na madrugada de 30 de dezembro de 1985. Mas dessa vez não me incomodei com o desconforto de passar a noite acordado e de pé. Afinal, ia passar as festas de Ano Novo com minha afilhada e meus compadres. 

Cheguei de manhãzinha em Penápolis e fui direto para a casa da Marilda e do Gilson, nos fundos da Pizzaria Roda Viva. Não entendia por que, mas tinha verdadeira adoração pela Juliana, uma linda e travessa bebê de oito meses. Amava-a até mais que aos meus sobrinhos, embora estivesse distante 400 quilômetros e só acompanhasse seu crescimento e desenvolvimento pelas cartas de minha comadre Marilda. 

Então aquele 30 de dezembro foi especial porque pude passar o dia com minha princesinha. E também conversar bastante com minha melhor amiga e confidente que se mostrou surpresa com a notícia de que eu estava namorando uma garota em Americana. 

O Gilson trabalhava na Copebel, o depósito da Antarctica, e mesmo com a correria das vendas e entregas de bebidas do final de ano, veio almoçar conosco. Chegou trazendo uma caixa de bebidas para a festa do reveillon e logo após o almoço retornou ao trabalho. 

No final do dia, sentados no chão da sala e assistindo TV, esperávamos o Gilson para o jantar. Foi quando o Pedro Campos apareceu na porta da casa. Me cumprimentou efusivamente e, dirigindo-se à Marilda, perguntou pelo Gilson. Ela explicou que estávamos esperando que ele chegasse do trabalho para o jantar. 

"Ele tem apelido?", insistiu o Pedro. "Tem, é Palhinha", respondeu a Marilda. "Palhinha, né!", resmungou o Pedro, coçando a barba e acrescentando, de sopetão: "João, vem aqui comigo que o dr. Pentagna quer lhe conhecer". 

Achei aquilo meio esquisito, mas como o Pedro era esquisito... Ergui-me do chão e o acompanhei. Ao chegar à frente da pizzaria o Pedro sussurrou: "João, o Gilson sofreu um acidente de carro e parece que faleceu. Precisamos fazer o reconhecimento do corpo".

Mal completou a frase e foi interrompido pela Marilda que, nervosa e em prantos, questionava o que tinha acontecido com o Gilson. Sua forte intuição levou à desconfiança daquela visita fora de hora e de propósito do patrão. 

Fiquei completamente atordoado. Saí de Nova Odessa na noite anterior cheio de alegria para festejar o início de um novo ano com pessoas queridas e agora estava ali, antes de acabar o ano velho, com a missão de identificar o corpo do Gilson e sem poder ainda dizer à Marilda o que tinha acontecido. 

Deixamos a Marilda na casa da Marina e nos dirigimos à Santa Casa de Penápolis, onde o Cláudio Stevanato, gerente da Copebel, nos confirmou a trágica notícia: cinco funcionários da empresa, entre eles o Gilson, se dirigiam à matriz, na cidade de Lins, para levar a movimentação do dia quando o carro bateu frontalmente com outro veículo, na rodovia Arnaldo Covolan. 

Uma "brincadeira", um racha entre o filho de um usineiro e o filho de um pecuarista ceifou a vida de cinco jovens, deixou a Marilda viúva e a Juliana orfã, transformando em tragédia o que seria uma alegre festa de reveillon.


(Publicado originalmente no Facebook em 09/03/12)

Vida de cruz sem crucificação da vida

Graça, simpatia e beleza
Igreja: Carisma e Poder foi o livro de maior repercussão do teólogo Leonardo Boff. Os ensaios de eclesiologia ali contidos causaram grande polêmica e lhe renderam o silêncio obsequioso imposto pelo Vaticano, leia-se Cardeal Ratzinger. 

A punição só veio corroborar o que Leonardo dizia nos seus escritos: a forma de organização interna da Igreja revela uma instituição centralizadora, autoritária e machista. Assim continua até hoje, aliás um pouco pior com a ascensão de Ratzinger ao papado. 

Mas para mim esse não foi o livro mais importante do grande teólogo brasileiro. Paixão de Cristo, Paixão do mundo foi a obra boffiana que mais me tocou e me ajudou a superar algumas crises existenciais e afetivas, quando deixei Penápolis e me mudei para Nova Odessa. 

Aprendi que o sofrimento é inerente à nossa limitada condição humana e que o importante é não permitir que ele crucifique nossa vida. Antes, devemos fazer do sofrimento uma semente de libertação. 

Partilhava isso em cada carta enviada à minha comadre Marilda, lá nos idos de 1985, buscando ajudá-la a também superar suas dificuldades e crises no trabalho, na família, no casamento e, sobretudo, o sofrimento que lhe representava deixar a Juliana, ainda bebezinha, para trabalhar e estudar. 

Foi assim que, apesar da distância, cultivamos nossa amizade: com respeito, solidariedade e ajuda mútuas, um não deixando que o outro fraquejasse, um evitando que o outro tivesse sua vida crucificada pelas dores do cotidiano. 

Mas o que de fato cimentou nossa relação fraterna foi o nascimento da Juliana. Eu já a amara desde que fiquei sabendo de sua concepção, esperei pela sua chegada como se eu próprio fosse o pai. 

Só a conheci pessoalmente no seu batizado, aos três meses. Mas já tinha me apaixonado pela sua graça, simpatia e beleza revelada nas fotos que a Marilda me enviava todos os meses e que aparecem nesta foto-montagem. 

Enquanto apreciava essas fotos, durante horas a fio, sentia uma revolução dentro de mim, uma alegria indizível... Era como um bálsamo a aplacar as dores do cotidiano.

(Publicado originalmente no Facebook em 07/03/12)

Cartas

Por uma carta a boa notícia: Juliana nasceu
Nos porões da ditadura militar, durante os quatro anos em que foi mantido encarcerado, Carlos Alberto Libaneo Christo, o frei Beto, recorria às cartas para manter-se vivo. 

As Cartas de Prisão, reunidas posteriormente em livro, não se restringiam à comunicação com o mundo exterior. Eram um grito de amor à liberdade e à vida que mantinha acesa a esperança, que ajudava a amenizar a dor causada pelo jugo dos torturadores, que alimentava a fé e a compaixão (não piedade) para com os excluídos... 

No solitário "exílio" de meu quarto, quando troquei Penápolis por Nova Odessa, também eram as cartas que me mantinham vivo, amenizando a dor da distância dos amigos, alimentando a esperança do (re)encontro e fortalecendo os laços das amizades.

Após um longo dia de trabalho, era na reclusão de meu quarto (se fosse um monge chamaria de cela) que saboreava cada palavra cada frase, cada notícia das cartas que recebia do Xavier, do José Luís, do Talo, da Leonila, da Rosana, do frei Carlos, frei Osmar e, principalmente, da Marilda

Lia, relia e me sentia revigorado, fortalecido. E respondia a cada uma das correspondências no mesmo dia que as recebia. Não passava um dia sequer sem escrever a algum dos amigos, poucos mas diletos. Muitas vezes acordava no meio da noite com a caneta entre os dedos e a folha amassada sob o rosto. 

Era através das cartas que dialogava com a Marilda, tentando entender e ajudar nas suas dificuldades no trabalho, com a família, no casamento... Me sentia um irmão mais velho, embora seja quase um ano mais novo, aconselhando sobre situações que nunca tinha vivido. 

Foi através das cartas que acompanhei cada fase de sua gravidez, torcendo para que me desse uma afilhada, embora ela preferisse um menino. E foi através de uma carta da Rosana que soube do nascimento dessa princesinha linda aí da foto, a Juliana

Já sabia, através das cartas da Marilda, que a bebê era perfeita, que tinha todos os dedinhos nas mãos e nos pés, mas que era um bebê lindo só fui saber quando recebi suas primeiras fotos junto com uma carta. 

Era nas cartas que eu também partilhava meus projetos, minhas inseguranças, minhas alegrias e frustrações, minhas reflexões e conquistas. Guardo até hoje a maioria dessas cartas recebidas dos amigos. Delas, assim como de um baú ou das escrituras sagradas, sempre revivo fatos antigos e descubro novos caminhos. 

Cartas... Como fazem falta no tempo atual!


(Publicado originalmente no Facebook em 05/03/12)

Um calouro na redação

Do Diário para O Liberal
Minha decisão de recusar o trabalho na Rádio Clube de Americana não foi bem aceita pela minha família. Afinal, vivíamos em 1985 uma época difícil, de desemprego crescente, com mais de 77 milhões de brasileiros vivendo na miséria absoluta. Abrir mão de um bom emprego, com salário razoável, apenas pelo "capricho" de não abrir mão de convicções e da dignidade pessoal e profissional. Ninguém entendia.

Mas não me abati e fui batalhar outro emprego. Comprava as edições dominicais do O Liberal e selecionava nos classificados as possibilidades de trabalho. 

Não demorou. Na segunda de manhãzinha, com o anúncio classificado na mão fui até a Tarumã Confecções, na rua Major Rehder, em Americana. Quando cheguei na esquina quase desisti. Uma fila enorme disputava a vaga de auxiliar de expedição. Mas já que estava ali, fiquei e preenchi a ficha de número 121. 

No dia seguinte fui chamado para uma entrevista. O Antonio, um dos sócios da empresa, me questionou por que estava ali disputando uma vaga numa fábrica tendo formação superior. Expliquei que estava chegando a Americana e precisava trabalhar. Fui contratado. 

Entrava todos os dias às 7h30 e saía quando acabava o serviço, às 19h30, 20h, 21h, 22h, 23h... Só não fui bóia-fria porque as marmitas eram mantidas aquecidas em banho maria até a hora do almoço. Às vezes passava o dia todo ocioso, apenas ajeitando as peças nas prateleiras. De repente, lá pelas cinco da tarde começavam a chegar os pedidos. Aí o ritmo se tornava frenético: contar e separar o calções, bermudas e calças, esperar a conferência e depois empacotar a mercadoria para ser despachada. 

A Tarumã fornecia seus shorts para muitas lojas da capital, mas os principais clientes eram as lojas Mesbla e Mappin. Quando o trabalho passava das 20h nos providenciavam um lanche com guaraná e nesses dias quase sempre me chamavam para ajudar no escritório, no preenchimento de notas fiscais e duplicatas. 

Foram apenas três meses. Mas quando anunciei minha saída para trabalhar no Diário de Americana tentaram evitar fazendo uma proposta de melhoria salarial e de efetivação no escritório. Agradeci e fui para o Diário, onde fiquei aproximadamente seis meses. O trabalho ali desenvolvido me abriu as portas do O Liberal

Essa foto, em que apareço de boina para cobrir a careca provocada pelo trote na PUC, retrata o momento exato em que o Clemente Buoni me ligava na redação do Diário para avisar que eu deveria passar no final do expediente no O Liberal para conversar com o editor Ju Jensen. 

Trabalhar no O Liberal era o sonho de consumo de todo jornalista americanense naquela época. E pra mim tornou-se realidade.

(Publicado originalmente no Facebook em 04/03/12)

Filho da PUC

Filho da PUC
Logo de manhã, quando me dirigia à missa dominical, passei na banca e comprei o Correio Popular. Estava ansioso pelo resultado do vestibular prestado na PUC Campinas. Passei os olhos pela lista e não vi meu nome. A ansiedade virou frustração.

Segui para a missa junto com o Xavier, que estava em Nova Odessa nos visitando. Ao retornar para casa, enquanto aguardava o almoço, resolvi olhar novamente o listão e eis que meu nome estava lá, entre os aprovados. Foi uma explosão de alegria. Agora eu seria um "filho da PUC". 

Estava, nesta época, no Diário de Americana. Na segunda, muitos colegas da imprensa me parabenizaram pela conquista, mas o que mais me encheu de satisfação foi a ligação do Clemente Buoni, que tinha sido meu chefe no Diário. Além da felicitação ele repetiu o que prometera quando deixou o jornal: "Logo, logo vou te levar para O Liberal". 

Cursar jornalismo era um sonho, mas não foi fácil. Levantava às 5h30 para começar as aulas às 7 da manhã na PUC. Dois ônibus na ida, dois na volta. Chegava correndo em casa, engolia o almoço e saía correndo novamente para chegar às 13 horas no jornal, onde trabalhava até a noite. Tinha horário para entrar, mas nunca para sair. 

Além da cansativa correria, para quem já vivia a realidade das redações dos jornais, o curso era um saco. Pouco se aproveitava. Classe numerosa, com quase cem alunos, a galera do fundo fumando e tocando violão... Isso quando não decidia deixar a sala e se embrenhar no matagal que cercava o campus, não sei se para consumir drogas ou à procura de um "matel". 

Além de tudo isso, greves intermináveis dos professores. A única coisa que tinha regularidade na PUC era o pagamento das mensalidades. Sentia uma saudade tremenda das aulas e dos professores da Funepe que, para mim, tinham qualidade infinitamente superior.

(Publicado originalmente no Facebook em 03/03/12)

Casamento

Frei Agostinho abençoa o "Sim" de Marilda e Gilson
Normalmente eu saía de Lins no sábado de manhã para passar o final de semana em Penápolis. Naquela semana, porém, voltei na sexta à tarde para resolver pendências no jornal, pois tinha um compromisso importante no sábado: o casamento da Marilda com o Gilson.

Assim que cheguei no jornal, uma notícia me deixou estupefato: não haveria mais casamento! Por que? Ninguém sabia ao certo, mas cada um tinha uma opinião. Não conseguia ver uma explicação convincente. Tinha acompanhado de perto os preparativos para o casamento, inclusive ajudando a Marilda na escolha de seu jogo de quarto na loja Nova Flor. O fato é que essa notícia me entristeceu, pois a Marilda é desde aquela época minha melhor amiga e se cancelara o casamento algo não estava bem. 

Na manhã seguinte voltei ao Jornal Interior e tive outra surpresa: a Marilda e o Gilson vão se casar sim! Foi um corre-corre. Voltar rapidamente pra casa, preparar-se para o evento, correr para o Santuário para testemunhar aquele momento de alegria e esperança no futuro. 

Só algum tempo mais tarde fiquei sabendo pela Marilda todos os detalhes do casamento quase cancelado. Na véspera, diante de certa insegurança do Gilson, aquele friozinho na barriga que nos acomete quando estamos frente a uma decisão ou compromisso importante, a Marilda foi taxativa: "você não é obrigado a se casar. Crio minha filha sozinha. Não tem mais casamento". 

Após ataques de choro, ameaças e outras expressões de passionalidade, fala a voz da razão, o equilíbrio costumeiro do Gallinari: "entrem nesse quarto, conversem, reflitam sobre a vida de vocês e só saiam quando tiverem uma decisão tomada. Seja qual for, terá o apoio da família". 

Assim fizeram. E quando saíram, anunciaram felizes: "vamos nos casar"! Aí foi uma correria só: de bicicleta percorreram a cidade avisando aos amigos que o casamento estava mantido, levando bronca no cartório (estão pensando que casamento é brincadeira?).

Apesar de tudo formaram um belo casal e foram abençoados pelo frei Agostinho Tomazella. Desse enlace resultaram muitos frutos, alguns amargos, outros azedos, a maioria deles saborosos e doces. O principal deles foi uma princesinha de sorriso faceiro e cabelos cacheados, nascida em 24 de abril de 1985: Juliana Lima Lacerda.


(Publicado originalmente no Facebook em 29/02/12)

Irreverência inspiradora

Credencial do jornal O Liberal
Nem Ministério Público, nem Judiciário, Igreja ou sindicatos. Nenhuma dessas instituições tinha tamanha credibilidade quanto o jornal O Liberal, quando ali trabalhei entre 1986 e 1988. 

Não importava o problema, a população recorria sempre ao O Liberal para reclamar e obter uma solução. Todos os dias, na nossa reunião de pauta, o editor Ju Jensen nos passava alguma queixa popular para apurar e produzir uma matéria: barulho, descarga de poluentes, buraco na rua, esgoto a céu aberto, inoperância de algum órgão público, mau atendimento... 

E o resultado quase sempre era positivo. Empresários, políticos, administradores públicos, todos temiam ver seus nomes expostos no O Liberal. 

Certa vez fiz uma matéria em que moradores reclamavam dos incômodos causados por uma pequena empresa. No dia seguinte o dono da empresa entrou aos gritos no jornal querendo saber quem era o responsável por aquela publicação, queria o nome do repórter para "acertar as contas". 

O saudoso Diógenes Gobbo, chefe de redação, foi curto e grosso: o jornal é o responsável e na edição de amanhã serão publicadas essas ameaças. O cara afinou na hora, se acalmou e tentou se explicar frente as queixas. 

Diógenes, aliás, fazia a diferença na redação do O Liberal. Tinha idade para ser pai de qualquer um dos repórteres, tinha mais tempo de jornalismo do que nossa idade, mas nos tratava como iguais, como companheiros, valorizava os bons textos e os furos de reportagem que conseguíamos. Além de mim e do Ju Jensen, compunham a equipe o Clemente Buoni, o Cláudio Marqueti e a Rita de Cássia Andrade. 

Muito espirituoso e sempre bem humorado, Diógenes conseguia manter um clima de descontração e entrosamento na redação. Num final de tarde, ao entrar na redação, encontrou sua cadeira sobre a mesa. Era uma traquinagem nossa só para ver qual seria sua reação.

Ele parou na frente da mesa, olhou e nada disse. Dirigiu-se à mesa ao lado, pegou outra cadeira, colocou-a sobre a mesa e sobre uma das cadeiras a máquina de escrever. Subiu na mesa, sentou-se na outra cadeira e começou a redigir sua coluna "Feira Livre". Explodimos em gargalhada, mas ele não se abalou e continuou ali por algum tempo, como se nada tivesse acontecido. 

Outra vez, colocamos cola em todas as teclas de sua máquina. Também não se abalou, pegou a máquina e jogou-a ao chão fazendo voar teclas, parafusos e outras peças por toda a sala. Diógenes fez a diferença no jornalismo de Americana. E, ao falecer no ano passado (2011), me inspirou a escrever esses causos, coisa que ele fazia com maestria.

(Publicado originalmente no Facebook em 28/02/12)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Nasce uma paixão

Carteira funcional do Diário de Americana
Minha passagem pelo Jornal Interior, além do aprendizado, foi marcada pelo que meu amigo João Luis dos Santos chama de agenda positiva. Ao longo de meses produzi matérias especiais sobre o trabalho das entidades assistenciais de Penápolis, destacando a diferença que a ação de voluntários fazia na vida de muitas pessoas. 

Lar Vicentino, Casa Anjo da Guarda, SOS, Auta de Souza, Casa da Sopa, HE, Oficina Santa Isabel... Todas as entidades da época foram retratadas nessa série de reportagens especiais. Retratadas apenas com palavras, pois naquela época não tínhamos ainda as facilidades das câmeras digitais nem da impressão offset. Estampar uma foto no jornal dependia de um clichê, que só erá produzido em Rio Preto e custava os olhos da cara. 

Outra série de matérias especiais, produzidas para uma edição especial de aniversário da cidade, trouxe entrevistas com todos os ex-prefeitos vivos na época: Joaquim Veiga Araújo, Nagib Sabino, Dirceu Gastão dos Santos Peters, Jandira Trench e Edson Geraissate. 

No Diário de Americana a história foi diferente. Ali tomei contato direto com os conflitos sociais e de classe. Já nos primeiros meses de trabalho cobri diversas greves do setor têxtil, nas empresas Distral, Fiobra, Toyobo e Sandin Rosada, entre outras. 

Os trabalhadores têxteis de Americana reagiam aos baixos salários e más condições de trabalho deflagrando paralisações por conta própria, sem recorrer ao sindicato da categoria que encontrava-se acomodado no assistencialismo. Dirceu de Leão e Hermine Demmer eram os dirigentes do sindicato na época, considerados pelegos pela oposição sindical têxtil. 

Lembro-me de forma especial da greve da Toyobo, onde a repressão policial foi intensa. Tenente Crivelaro (hoje capitão e vereador em Americana) e Sargento Eduardo comandavam as ações de repressão. Minha presença como repórter do Diário, junto com o fotógrafo Vitinho, servia de escudo aos grevistas. Enquanto permanecíamos na frente da fábrica, nenhuma violência policial se consumava, pois as lentes da Nikkon empunhada pelo Vitinho estavam sempre prontas para registrar as arbitrariedades. 

Me incomodavam muito as limitações que nos eram impostas. Muitos textos eram “tesourados” para não contrariar interesses de parceiros comerciais e políticos do jornal. Era preciso habilidade para ser fiel aos fatos e driblar a autocensura do jornal. Essa situação me levava a sonhar com o exercício do jornalismo popular tão logo concluísse a faculdade de Comunicação Social. 

Me aproximei e acompanhei de perto várias ações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra na região de Americana e Campinas, dos sem teto… Mas acabei me identificando mesmo com o jornalismo sindical, ao qual dediquei bons anos de minha vida.

(Publicado originalmente no Facebook em 27/02/12)

Amizade a toda prova

O Jornal Interior nos aproximou
Foi assim, no trabalho, que nasceu e se fortaleceu nossa amizade. Em 1984, formamos uma parceria para ganhar um dinheirinho extra na edição especial de aniversário da cidade. 

Essa edição circulava todo ano no dia 25 de outubro e os funcionários do jornal se empenhavam em conseguir anúncios das empresas parabenizando a cidade e congratulando-se com os penapolenses. Um caça níquel especial. 

Mas para os funcionários tinha a vantagem de receber uma comissão de cada anúncio conquistado. Eu e a Marilda Martins saíamos todos os dias, de bicicleta, e visitávamos várias empresas, do Cortume Leão à Sacotem, nos dois extremos da cidade. Ela entrava com o tino comercial e a lábia de boa vendedora e eu com a produção dos textos que se adequavam ao espaço adquirido pelas empresas na edição especial. 

Numa tarde, quando voltávamos de uma dessas saídas, felizes pela venda de bons espaços publicitários, a Marilda disse que precisava passar num consultório médico, que ficava ali na Rua dr. Mário Sabino bem em frente à antiga Funerária Tonelli. Entrou e me pediu para esperar. 

Depois de quase uma hora parado ali na rua, sentado na bicicleta, aguardando (im)pacientemente, a Marilda saiu e retornamos ao jornal. Notei que ela estava um pouco tensa, mas não questionei nada. 

Na manhã seguinte veio a surpresa. Logo de manhãzinha ela me convidou para ajudá-la a lavar as xícaras de café. Fomos até os fundos do jornal, onde havia um tanque, e ali, cheia de rodeios, muito temerosa, a Marilda revelou que tinha uma notícia para me contar, mas que tinha receio que isso pudesse interferir em nossa amizade. 

Respondi que uma amizade verdadeira não se abala assim facilmente e ela tomou coragem: "Estou grávida! Fiz um ultrassom ontem, quando paramos no consultório médico e só não disse nada porque queria contar primeiro ao Gilson". 

Não entendi porque uma notícia dessas pudesse atrapalhar ou acabar com nossa amizade e, sem pestanejar, ousei dizer: "Gostaria de ser o padrinho desse bebê". Ela consentiu e percebi uma expressão de alívio em seu rosto. 

Juliana Lima Lacerda foi minha primeira afilhada de batismo e sua vinda a este mundo sacramentou a amizade mais intensa que aconteceu em minha vida.

(Publicado originalmente no Facebook em 24/02/12)

Premonição

Marilda e Aderci
Por ironia do destino, ao ser contratado pelo Pedro Campos para ser repórter no Jornal Interior, passei a dividir o espaço com aquela bela jovem que tinha me chamado de irresponsável e que, nesta foto, aparece ao lado da Aderci. 

Nas modestas instalações do jornal, a mesma sala servia de recepção, departamento comercial e redação. A mesma máquina de escrever era disputada por mim, pelo Luis Kettelut, pelo Irineu Gimenes e o Silas Reche de Freitas. O Marcos Jorge e o Célio de Oliveira geralmente traziam seus textos já datilografados que, após uma revisão do editor, seguiam para a composição nas linotipos. A revisão final era feita pela Célia Moçouçah que sempre tinha um bom astral. 

Certa vez a Celinha chegou esbaforida no jornal, logo após o almoço: "João, ficou sabendo que dois porraloucas meteram o pau no jornal pela Rádio Difusora?" Gelei na hora. Mas logo me controlei e, pausadamente, respondi: "Célia, o porralouca, na verdade foi um só, eu, mas não tem essa história de meter o pau no jornal não". 

E passei a narrar o ocorrido: na noite anterior tinha sido procurado na Funepe pelo Antonio Carlos Duarte de Carvalho, que estava trabalhando como repórter na Difusora. Estava indignado porque tinha sido escalado para repercutir junto à população um crime bárbaro que tinha acontecido um ou dois dias antes: matricídio seguido de suicídio. 

A Difusora, como qualquer veículo de comunicação que a gente conhece hoje, estava explorando exaustivamente a tragédia. Então eu disse ao Carlão: "se você quiser, posso comentar essa situação, como presidente do Diretório Acadêmico". 

De imediato ele ligou o gravador e eu passei a desancar a atitude oportunista e sensacionalista da Difusora. Disse achar estranho que outras violências do cotidiano, tão ou mais graves que aquela tragédia, como o salário mínimo miserável, o desemprego e os crimes da ditadura militar, não merecessem a atenção da emissora. E arrematava condenando os abutres que querem lucrar com a dor alheia. 

Por obra do acaso ou mesmo por desatenção do Marcos Jorge, que comandava o programa na Difusora, a entrevista foi ao ar, deu o maior rebu e o Carlão acabou demitido. 

Mas retomando o início do causo, acabei me sentando por um longo tempo na mesa ao lado da séria e eficiente secretária do Interior, a Marilda Barbosa da Silva. Aos poucos ela foi superando aquela primeira impressão, deixou de me achar irresponsável e nos tornamos grandes amigos. Talvez os melhores amigos um do outro.

Trocávamos confidências, ouvíamos as queixas e problemas mútuos, partilhávamos as alegrias. Amizade sincera e verdadeira. 

A afinidade era tanta que a Lúcia Moçoucah, nossa patroa, às vezes se sentava na ponta da mesa e nos dizia: "Marilda, você não pode se casar com o Gilson nem você, João, com a Rosana. Vocês combinam muito bem, parece que foram feitos um para o outro". 

Ríamos muito desse "devaneio" da Lúcia que, mais tarde, revelou-se premonição. Mas tudo tem sua hora, seu lugar, sua razão de ser.

(Publicado originalmente no Facebook em 23/02/12)