segunda-feira, 30 de maio de 2016

Compaixão

Da experiência da dor, pessoas novas surgiram
"A morte é sempre um mistério. O tempo passa e não conseguimos entendê-la. Aceitá-la, então, torna-se mais difícil quando ocorre em circunstâncias trágicas como foi no caso do Gilson. O dia 30 de dezembro ficará para sempre marcado. A Marilda viúva aos 21 anos. A Juliana orfã aos 9 meses".

Até hoje não tenho explicação do por que resolvi registrar em minha agenda, em forma de diário, os fatos e as reflexões do ano de 1986. E foi com esse comentário inicial que abri meu primeiro e único diário. A morte do Gilson me chocou profundamente, como nunca tinha acontecido antes. Não sei se por me ver um ator, embora coadjuvante, daquele drama ou se pela compaixão que brotou em meu peito e minhas entranhas. 

Com-paixão. Ao contrário da comiseração, da pena, que nos situam fora da dor alheia, geralmente em posição superior, a compaixão é o sentir com o outro, a mesma dor, o mesmo sofrimento, as mesmas preocupações. É colocar-se incondicionalmente ao lado do outro, com todo o seu ser. 

Ao longo dos dias, das semanas, dos meses que se sucederam ao trágico 30 de dezembro de 1985, não esquecia um instante sequer da dor que se instalou repentinamente nas vidas da Marilda e da Juliana. E isso também me doía muito. Afinal, a Marilda era (e continua sendo) minha melhor amiga, quase uma irmã. E pela Juliana, minha afilhada, nutria um sentimento paternal. 

Ancorado nos ensinamentos do teólogo Leonardo Boff, de que a solidariedade aplaina os abismos e exorciza todos os medos, procurava manter-me presente no cotidiano da Marilda e da Juliana, mesmo estando distante. Escrevia com frequência estimulando sua força, sua coragem e a esperança de que as feridas seriam cicatrizadas e permitiriam um futuro feliz. 

E, sobretudo, dialogava com Deus, no silêncio do meu quarto, solicitando do Absoluto a força necessária para que todos pudéssemos prosseguir a caminhada. Me angustiava muito quando alguma carta da Marilda revelava traços de depressão. A distância não me permitia outra atitude que não fosse escrever, compartilhando a dor e tentando encorajá-la. 

Desejava intensamente estar ao seu lado para ampará-la e prestar minha solidariedade. Assim fomos nos aproximando cada dia mais. A distância física continuava de 400 quilômetros, mas havia uma comunhão de espírito, de alma, de sentimentos, de corações... 

Compartilhar as dores da Marilda, por outro lado, me fez esquecer e superar as minhas próprias. Os dissabores familiares, as frustrações afetivas, os problemas profissionais... tudo isso não passava de uma gotinha d'água diante do oceano de sofrimento vivido pela minha comadre-amiga-irmã. 

Quando nos reencontramos pela primeira vez, em 15 de fevereiro de 1986, na casa de sua mãe, dona Júlia, para onde retornou logo após a morte do Gilson, éramos pessoas novas, mais maduros, imunizados na experiência da dor. E marcados pelas cicatrizes dos amores vividos, juntos sentenciamos: paixão, casamento, vida a dois? Nunca mais! 

Não tínhamos aprendido ainda, que nunca não existe no tempo de Deus.


(Publicado originalmente no Facebook em 14/03/12)

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