quinta-feira, 28 de abril de 2016

Mestre Paulo Freire

Foi cursando Pedagogia na Funepe que conheci Paulo Freire, ou melhor sua obra. Pedagogia do Oprimido, De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, Ação Cultural para a Liberdade, Educação Como Prática da Liberdade, Educação e Mudança… Nesses livros aprendi a ver o mundo, a sociedade, a humanidade e a Educação com outros olhos. Os olhos dos oprimidos, da busca da libertação, da prática da liberdade, da construção da autonomia.

O contato com as ideias freireanas me abriu um novo horizonte de atuação política. Partilhando essas ideias com a Vania Paliota, o Joaoluis Santos, o Gilberto Yuji e o Antonio Carlos Carvalho, surgiu a ideia de desenvolvermos em Penápolis um trabalho de alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire.

Contamos com a assessoria do Antonio Folquito Verona, professor da Faculdade de Serviço Social de Lins, que vinha a Penápolis semanalmente para nos ajudar na fundamentação teórica do método, na formação histórico-política e na discussão de cada passo do trabalho.

Às vezes nos reuníamos na sede da JAM (Juventude de Ação Mariana), então coordenada pelo Geraldo Soares Malta, outras vezes em espaço cedido pela então assessora de cultura do prefeito João D’Elia, a Dinair Aires.

Escolhemos o Jardim Tóquio para o trabalho de alfabetização. Ali passamos cerca de três meses convivendo nos finais de semana com as famílias, a maioria de cortadores de cana, com a tarefa de levantar o universo vocabular, a primeira fase do método Paulo Freire que precede a escolha das palavras geradoras.

Uma dessas palavras era COMIDA. Na discussão das situações cotidianas relacionadas à palavra, que precedia a sua decodificação e escrita de novas palavras, a dona da casa abriu a porta do pobre armário revelando sua condição: completamente vazio. Não havia comida. Era a situação de cada família daqueles cortadores de cana, os bóias-frias como eram chamados na cidade, naquele período da entressafra da cana de açúcar. Foi um soco violento em nosso estômago.

E agora, o que fazer? As ideias vão surgindo na medida em que os trabalhadores vão tomando consciência de sua condição de sujeitos. Alguém então propõe: “poderíamos ir juntos ao supermercado do Sesi, que é da indústria, conversar com o gerente e pedir que nos venda fiado até a chegada da safra”. Fica combinado que a ida ao Sesi, onde hoje funciona o Super Amália, na vila São Joaquim, seria na manhã de sábado.

Fui para o trabalho naquele sábado com o coração apertado, uma ansiedade incontrolável, querendo estar lá no Sesi. Era balconista na Jojoca Autopeças, ali no comecinho da avenida Alayde Ferraz de Almeida, a cerca de 500 metros do supermercado, mas não teve como escapar. Só mais tarde, depois de deixar o trabalho, tomei conhecimento dos fatos lá ocorridos e que, naquela época, foram chamados de “invasão/saque do Sesi”.

Os trabalhadores e suas famílias chegaram ao Sesi junto com a Vânia, Yuji, João Luís e Antonio Carlos. As portas estavam fechadas. O grupo esperou um pouco e já começava a se dispersar quando chegou a Tropa de Choque distribuindo cacetetes nas costas de todo mundo.

Yuji, João Luís e Antonio Carlos foram presos. Vânia conseguiu fugir escondendo-se no meio do matagal, onde hoje está instalado o Parque Maria Chica. Ainda vivíamos sob a ditadura, embora agonizante. A pressão psicológica sobre os detidos foi terrível. O prefeito João D’Elia interviu, não sem antes externar sua reprimenda, classificando nossa ação como “infantilismo de esquerda”.

Por estar trabalhando naquele dia me safei de apanhar da polícia e ser preso, mas isso me deixou com uma inveja danada dos companheiros. Infantilismo ou não, o fato é que aquele fato histórico teve conseqüências, imediatas e futuras.

A primeira foi escancarar a situação de penúria vivida pelos cortadores de cana, abandonados à própria sorte e à caridade cristã nas sucessivas entressafras anuais. E dessa constatação surgiu um movimento que tentou buscar alternativas para o problema. Me recordo de uma grande assembléia realizada no Ginásio de Esportes, se não me engano no ano de 1983, com a participação de pequenos proprietários rurais, Usina Campestre, Prefeitura e sindicatos patronal e dos rurais, que propôs o empréstimo das áreas de várzea das pequenas propriedades para plantio de alimentos pelos cortadores de cana nos períodos de entressafra, com cessão de máquinas e apoio da Prefeitura. Idéia boa, mas não prosperou.

Essas lembranças rechearam de uma emoção indizível meu encontro com Paulo Freire, em 1987, numa palestra no Centro Estadual de Educação Supletiva de Americana. Como repórter do jornal O Liberal solicitei e ele gentilmente me concedeu uma entrevista. Certamente a mais importante de minha vida.

(Publicado originalmente no Facebook em 24/01/12)

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Funepe

Campus da Funepe
Ao terminar o segundo grau, em 1981, tencionava ir para o seminário dos freis capuchinhos. Mas a ordem tinha decidido só admitir candidatos à vida religiosa maiores de 18 anos. E como eu tinha só 16, fui aconselhado pelo frei Osmar Cavaca, o promotor vocacional, a iniciar um curso universitário.

Por falta absoluta de opção, decidi fazer Pedagogia. Prestei o vestibular da Funepe, passei em 27º lugar e me vi diante de outro problema: como pagar a matrícula e as mensalidades? Ainda não tinha um trabalho assalariado, ajudava meu pai na mercearia, vendia sorvetes e trabalhava no Birosca Lanches nos finais de semana. Mas isso não era suficente.

Foi então que minha mãe entrou em ação. Sempre ela. Nos momentos de dificuldades da família ela sempre tomava alguma iniciativa para buscar uma saída.

Sem avisar ninguém ela procurou o Areonte de Assumpção Rosa, que era presidente da Câmara de Vereadores, e pediu a ajuda dele. Areonte escreveu um bilhete e disse a ela que procurasse o José Mauro Vieira Pereira, diretor administrativo da Funepe.

Cheia de esperança, minha mãe procurou o José Mauro, voltou pra casa e me deu uma notícia fabulosa: você ganhou uma bolsa de estudos integral, vai pagar só a matrícula.

E foi assim que cheguei à Faculdade e iniciei novos rumos na minha vida. Obrigado Areonte, obrigado José Mauro, obrigado mãe!



(Publicado originalmente no Facebook em 13/01/12)

Ecumenismo

"Se insistir nessa loucura não autorizo que o evento ocorra no salão paroquial".

"Tudo bem. No dia e horário marcados para a abertura vamos nos concentrar aqui, na frente do Santuário, e sairemos em passeata até a Igreja Metodista que já nos abriu as portas. E levaremos faixas e cartazes explicando porque a Semana da Juventude estará acontecendo lá".

Foi assim, curto e grosso, meu diálogo com o frei Saul Peron, pároco do Santuário São Francisco de Assis quando assumimos a coordenação regional da Paju (Pastoral da Juventude). A proposta da coordenação diocesana, encabeçada pelo Jaime Isidoro e a Neide Simão da Mata, era de realizar uma semana ecumênica.

Em Penápolis seguimos à risca essa orientação, entendendo que a semana só seria ecumênica se tivesse a participação efetiva de jovens de outras igrejas desde a organização do evento. Abrimos o diálogo com a pastora Railda, da Igreja Metodista, que foi muito receptiva à proposta e nos indicou a Ruth Pereira Dias, que se encontrava de férias em Penápolis, para integrar a equipe organizadora da Semana da Juventude.

Frei Saul não aceitou. Que história era essa de outras igrejas ajudarem na organização de um evento católico? Nossos argumentos não o convenciam. Quando percebeu que estávamos firmes na proposta, deu o ultimato, numa conversa que tivemos à frente da secretaria paroquial, num final de tarde: não terão o salão paroquial para a semana da juventude.

Só não esperava pela resposta à queima roupa: então vamos para a Igreja Metodista. Então cedeu. Se fez presente todas as noites nos debates e reflexões. Sentava ao fundo, meio desconfiado, observando cada detalhe. Esse foi um dos muitos embates que tivemos. Mas sempre mantivemos o respeito e admiração mútuas.

E a Semana da Juventude aconteceu pela primeira vez em Penápolis, revestindo-se de sucesso, seja pelo número de jovens participantes, pela metodologia dialógica adotada nos encontros, seja pela qualidade dos debates. Pra finalizar, levamos uma grande comitiva a Guararapes no dia 22 de julho de 1984, no encerramento diocesano da Semana. Lá tivemos apresentações culturais e a celebração presidida pelo bispo Dom Walter Bini, recém chegado à Diocese de Lins, e por dom Demétrio Valentini, bispo de Jales.

(Publicado originalmente no Facebook em 04/01/12)

Sistema Único de Saúde

Por volta das seis da manhã minha mãe me acordava. Meio sonolento eu me trocava, tomava um café preto e seguia para o INPS, na esquina da Rua Irmãos Chrisóstomo de Oliveira com a avenida Rui Barbosa, onde dezenas de pessoas já aguardavam na fila.

Era assim toda vez que ela ou meu pai precisavam de uma consulta médica. Era assim a saúde pública em Penápolis e em todo o Brasil até o início dos anos 80: a fila do INPS. Na verdade era o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social).

Só tinha direito de enfrentar essa fila quem tinha essa carteirinha de beneficiário, fosse segurado ou dependente. A condição para ser segurado do Inamps era ter carteira assinada ou contribuir como autônomo. Quem estivesse desempregado ou na informalidade não tinha direito à assistência médica e hospitalar.

A minha carteirinha nunca usei, mas enfrentei muita fila para pegar uma guia de consulta para minha mãe. Às vezes para o dr. Jorge, outras vezes para o dr. Mário Ramos. Ambos cardiologistas. A preferência dela era o dr. Jorge, mas dependendo da posição na fila nem sempre conseguíamos a guia, pois havia uma cota para cada médico.

Muita gente passava a noite na fila para conseguir a consulta com o médico da preferência ou para ganhar um trocado guardando o lugar para quem não queria levantar tão cedo. Essa situação só começou a mudar em Penápolis a partir de 1983, quando dr. João Carlos D'Elia assumiu a Prefeitura e iniciou a implantação dos postinhos (PAS) nos bairros. Foi a primeira política de universalização do atendimento à saúde em Penápolis, que serviu de modelo para a criação do SUS, a partir da constituição de 1988.

Sempre me lembro da fila do INPS quando vejo críticas ao SUS. O sistema tem falhas, é fato, mas o considero o melhor sistema público de saúde do mundo. Nesses 20 e poucos anos avançou muito.

Quando você compra alimentos num supermercado, come num restaurante ou numa lanchonete e se sente seguro com as condições de higiene, o SUS está presente. Quando você leva seu filho ao postinho para ser vacinado (e olha que sou contra a vacinação), é o SUS presente. Quando você recebe a visita de agentes comunitários de saúde em sua casa, orientando sobre a prevenção da dengue, o SUS também se faz presente. Quando um parente seu vai a Barretos se tratar de câncer... Ou ao Hospital das Clínicas passar por uma cirurgia... Ou ainda buscar um medicamento da cesta básica de remédios, realizar exames numa clínica de especialidades, fazer fisioterapia...

Em todos esses procedimentos, nunca imaginados pelos frequentadores da fila do INPS, está presente o SUS. Que precisa ser melhorado, aperfeiçoado e, sobretudo, superar a visão médico-hospitalar, passando a trabalhar a educação para a saúde através da difusão de hábitos saudáveis entre a população.

Mas não dá pra negar: o SUS, com seus defeitos e virtudes, com suas qualidades e deficiências, atende a todos os brasileiros que o procuram, mesmo aqueles que o criticam e aqueles que poderiam dele prescindir, mas recorrem à Justiça para que o Sistema lhes pague tratamentos de ponta, caríssimos.

(Publicado originalmente no Facebook em 03/01/12)

Religiosidade

A religiosidade sempre foi uma marca de minha família, herança de meu avô Conrado. 

Embora nascido após o Concílio Vaticano II, me lembro de ter ido, ainda pequenino, a algumas missas que seguiam o ritual pré-conciliar, com o padre de costas para a assembleia. Devia ser algum saudosista inconformado com o ar puro que soprava sobre as velhas estruturas da Igreja e tentava renova-la.

Ir à missa não era muito agradável, ficar ali sentado ao lado de minha mãe, sem entender bem o que estava acontecendo, com sono e sem poder dormir, tomando beliscões quando conversava…

Mas esse hábito foi nos aproximando da Igreja. Na adolescência participei do movimento Apostolado da Oração, junto com minha mãe. Toda primeira sexta-feira do mês íamos à missa e à reunião. Mas eu gostava mesmo era dos encontros da campanha da fraternidade, que nos colocavam temas atuais e desafiadores da realidade para reflexão.

Foi nessa época que comecei a participar dos grupos de jovens. O primeiro foi a JAM – Juventude de Ação Mariana, o braço jovem da Congregação Mariana. Os encontros eram sempre aos domingos, após a missa das 10 no Santuário. Meu irmão Camilo era o coordenador do grupo nessa ocasião. Nos encontros, além de avisos gerais, sempre era combinada uma ação concreta, como uma visita aos idosos do Asilo São Vicente.

Mas o grupo de jovens era também um local de encontros. Muitos casais amigos se conheceram ali, nas reuniões da JAM, como o Beto e a Yara, Priguiça e Isabel, Geraldo Malta e Ivete, Lucinei Ferreira e Adelfo, Camilo e Lucia

Participei de um dos encontros da JAM (foto), que começava na sexta-feira à noite e terminava no domingo à noite, tudo cercado de muito mistério. Nem mesmo o local do encontro era revelado antes, só a equipe organizadora sabia. Durante o encontro palestras e mais palestras, marretas que martelavam em nossas cabeças, com forte conteúdo emocional para tentar a “conversão” dos encontristas. E a maioria chorando, chorando… Não conseguia entender muito bem a razão de tanto choro, até porque conhecia bem os palestrantes e não via em alguns a coerência de vida com o que falavam.

Então… O fato é que fiquei pouco tempo na JAM. Aquele modelo de grupo de jovens não me satisfazia. E acabei me encontrando na JUFRA – Juventude Franciscana. Com assessoria do frei Isaías, constituímos ali um grupo de estudos e reflexão sobre as raízes do franciscanismo, sobre os princípios e exigências do Evangelho e sobre o documento da Conferência de Puebla. Tudo aliado à prática da oração fraterna.

Xavier, Marcos Belussi, Nilda Douradinho, Maria Costa, Claudinei Sacomani, Pierangeli e Renato faziam parte do grupo. Depois se juntaram a nós o João Luis, o Yuji e Antonio Carlos.

Como coordenador da Jufra fui convidado a participar de um encontro da PAJU – Pastoral da Juventude em Araçatuba e de lá trouxemos a proposta de superar a idEia e a prática de movimentos de jovens construindo uma pastoral da e para a juventude penapolense. Foi um desafio e tanto. Mas demos início a essa empreitada, constituindo uma equipe de coordenação local, com representantes de todos os grupos de jovens: pela Jufra, eu e Xavier; pela JAM, Izabel e Leonila; pela Jucripe, Santo e Maria Leonor; pela Legião de Maria, Nilva e Marcos Bonini; e pelo FLAC (grupo carismático), o Pantera.

De início pertencíamos à região de Birigui, que tinha o Doniseti Feltrin como coordenador, ao lado do meu amigo Carlos Silva. Depois houve a criação da região de Penápolis e assumi a coordenação regional junto com o desafio de organizar na cidade a primeira semana da juventude, de caráter ecumênico.
(Publicado originalmente no Facebook em 31/12/11)

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Adelino Peters

Cursei o 2º grau (hoje ensino médio) na Escola Estadual Adelino Peters, o antigo Colégio Industrial.

Naquela época, ao final do primeiro colegial os alunos deveriam optar por uma área (primária, secundária ou terciária), conforme suas habilidades e desempenho das diferentes matérias.

Quem tinha facilidade em biologia ía para a área primária, quem se saía bem em matemática e física escolhia a secundária e quem gostava mais de língua portuguesa acabava optando pela terciária.

Minha opção foi pela área secundária, pois sempre tive mais facilidade nas exatas. Português e literatura não eram meu forte. E vejam só a ironia: ao concluir o colegial fui cursar Pedagogia e, mais tarde, iniciei Jornalismo.

O primeiro ano, em 1979, foi muito difícil. O nível de exigência estava muito acima do que eu tinha experimentado até então. Já no primeiro bimestre fiquei com D em Matemática, a única nota vermelha em todo o meu histórico escolar. Não conseguia acompanhar as explicações da professora Mercedes. Tive que me desdobrar nos bimestres seguintes para recuperar e chegar ao final do ano com conceito A. Consegui.

Em compensação, comecei a gostar de língua portuguesa com a professora Anésia Vince Ferreira, que também ensinava literatura. Atual diretora do Museu do Folclore de Penápolis, dona Anésia me deixava maravilhado ao recitar decor "Os Lusíadas" de Camões. Foi com ela, também que aprendi técnicas de redação.

Foi nesse ano também que tive a melhor professora de Inglês que já conheci: Cecília Rahal, esposa do Faiz Rahal, professor de Física. Ela pronunciava as palavras e frases em inglês de forma doce e nos ensinava a língua estrangeira através de músicas. Me lembro até hoje da letra e da tradução de "Smile", de Charlie Chaplin, interpretada pelo Michael Jackson.

Faiz (pronunciava-se Feiz), ótimo professor, repetia sempre "tanto Faiz quanto Feiz", quando alguém questionava sobre seu nome. Tinha ainda o professor de Química Jaime Monteiro, o Jaimão, que depois se tornou vice-prefeito de Penápolis e que se estressava sempre que alguém imitava sua risada. A Ivone de Biologia, Zezé (não a Macedo) de História, o Fred de Desenho...

Da turma do primeiro ano me lembro de apenas três colegas: a Geneci Dezaneti, que hoje trabalha na Caixa, a Iara Alves de Lima, diretora-administrativa da Apae, e a Mariza Anelli, cujo pai tinha um bar na antiga rodoviária de Penápolis.

A partir do segundo colegial passei a estudar à noite, para poder trabalhar durante o dia. Mesmo assim fazia trabalhos de Física, Química e Desenho Técnico para alguns colegas não muito afeitos aos estudos, embora tivessem tempo livre para isso, como o Arikawa e o Robert Pentagna.

Os professores foram os mesmos no segundo e terceiro colegial: Faiz (Física e Física Aplicada), Jaimão (Química e Química Orgânica), Zé Fernando (Matemática), Fulanetti (Português e Literatura). E tinha a dona Satiko, de Desenho Técnico, uma japonesa que implorava aos alunos "sirêncio por favoro" sem perceber que alguns pulavam as enormes janelas da sala de desenho para cabular suas aulas.
(Publicado originalmente no Facebook em 28/12/11)

Paixão pela política

Dias atrás, no aniversário de 80 anos de minha tia Nena, meu tio João Gallo questionou se ainda estou envolvido em política. Antes que eu respondesse ele acrescentou: "seu pai sempre se queixava de você ter militância política, mas ele também era um apaixonado por ela".

Pura verdade. Aprendi a gostar de política com meu pai. Nas eleições municipais de 1972, morávamos no bairro Córrego Grande, a cerca de 10 quilômetros da cidade, mas não perdíamos um comício sequer.

Após um dia cansativo de trabalho na roça, meu pai colocava toda a família no velho Candango DKV, igual a este da foto, e partia para a cidade para acompanhar os comícios dos dois candidatos a prefeito.

Vivíamos a época do bipartidarismo implantado pela ditadura militar, mas não eram nem Arena nem MDB que disputavam o voto dos eleitores. O que importava era o candidato. De um lado Nagib Sabino, um alfaiate que já fora vereador e prefeito nos anos 60. De outro o engenheiro Edson Geraissate, também ex-prefeito.

Mais do que propostas de governo, valiam as acusações mútuas. O grupo político de Geraissate menosprezava Sabino por não ter formação universitária e por falar a linguagem simples do povo, tropeçando na gramática. Isso, para os partidários do engenheiro, era sinal de despreparo para o cargo de prefeito.

Já os nagibistas devolviam com acusações mais graves, colocando em dúvida o rápido enriquecimento de Edson que coincidiu com sua passagem pela Prefeitura. De funcionário público do DER transformou-se em empresário.

Era assim a campanha política. Meu pai, embora nagibista, também ia nos comícios do Edson, para ver o movimento. E discutir o processo eleitoral com conhecidos, fossem partidários ou adversários.

No final das contas, o alfaiate ganhou a eleição e o engenheiro parece que até hoje não assimilou muito bem essa derrota. Nem se aventurou mais a disputar a Prefeitura, talvez com receio de novo vexame. Mas isso não vem ao caso.

O posicionamento político de meu pai, nessa época, era meio ambíguo. Votou na Arena de Nagib Sabino, mas também defendeu a eleição de Orestes Quércia (MDB) para o Senado, em 1974. Me recordo de um dia em que estávamos na Casa Verde, mais conhecida como Loja do Turquinho, que ficava bem no começo da rua Altino Vaz de Melo.

Minha mãe estava na loja escolhendo tecidos e meu pai conversava com o Turquinho na calçada. O assunto: política. De dentro do Candango ouvi dele uma frase que ficou gravada em minha mente: "estamos vivendo uma ditadura disfarçada. Precisamos eleger esse moço, o Quércia". Eu nem sabia o que era ditadura nem porque ela precisava se disfarçar, mas o Quércia eu já tinha visto num cartaz de campanha, colado na porta da casa do Augusto Porte, nosso vizinho de sítio.

Na eleição de 1976 já morávamos na cidade e meu pai cedeu a frente de nossa casa para um comício do Washington Paula Pereira e os candidatos a vereador, dentre eles o professor João Segura, que era o apresentador oficial dos comícios e, naquela noite, jantou em nossa casa.

Na mercearia, a discussão era apaixonada em defesa dos candidatos e acusações contra os adversários. Nessa eleição venceu Ricardo Castilho, pelo MDB. Foi a vitória do "Paz e Amor" (dedos médio e indicador abertos em V) contra o "Jóia" (sinal de positivo com o polegar erguido e os demais dedos fechados". Daí para frente comecei a ver a política com outros olhos e a pensá-la com minha própria cabeça.

(Publicado originalmente no Facebook em 19/12/11)

Frei Cirilo de Hamelin

 Freis capuchinhos na primeira casa de Penápolis.
A história de Penápolis está intimamente ligada à presença dos freis capuchinhos na região noroeste do estado de São Paulo. Não dá para falar de Penápolis sem eles nem deles sem Penápolis. Foram os freis os primeiros habitantes da primeira casa de Penápolis, construída em 1908 e que também servia de igreja e escola.

A história de cada penapolense também tem influência direta dos frades. Me recordo da presença de vários deles em minha infância: Frei Afonso de Louveira, que me metia medo com sua cara amarrada; Frei Fernando, que tinha um programa de variedades no rádio e que nos visitou certa vez no bairro Lagoa da Mata, atendendo ao pedido de um carta enviada por uma das minhas irmãs; frei José Vaz de Melo, penapolense filho do pioneiro Altino Vaz de Melo, irmão da poetisa Carmita de Melo Ahmad, e que era responsável pela gráfica do santuário e pela montagem do presépio em todos os natais; frei Silvério de Piracicaba (Marcelino Correr), que me batizou, me deu a primeira comunhão e depois se tornou bispo de Carolina/MA; frei Teófilo Tomazella, irmão de frei Irineu e primo dos freis Agostinho e Fulgêncio, que inspirava receio em muitos adultos mas tratava as crianças com muita ternura, especialmente na hora da confissão; frei Epifânio Menegazzo com sua inconfundível e longa barba branca, alva como algodão; Frei Rufino das Neves, outro penapolense, irmão do Tarcísio Gabriel das Neves (Livraria Católica).

Todos, de uma forma ou de outra, contribuíram para minha formação humana e cristã. Em 1978, quando estava na 8ª série, na Casa da Amizade, apareceu por lá um padre orionita, de Guararapes, fazendo promoção vocacional. A forma como se apresentou me sensibilizou e acabei dizendo ali que queria ser padre.

Talvez fosse apenas um desejo inconsciente de satisfazer um sonho não realizado de minha mãe, que não conseguiu ser freira como gostaria meu avô Conrado e que alimentou o desejo de ter um filho padre.

O fato é que dias depois esse mesmo padre, de quem já não recordo o nome, apareceu em casa para falar com meus pais, querendo levar-me para o seminário. Minha mãe ficou radiante de alegria, mas preferia ver-me frade capuchinho. E, então, levou-me para falar com o frei Cirilo Bergamasco (na foto em frente à primeira casa de Penápolis, é o último à direita), que era o pároco do Santuário São Francisco de Assis naquela época.

Foi ele quem me levou ao Seminário Santo Antonio, em Birigui, para participar do primeiro de uma série de encontros vocacionais. Por sinal, foi ali que conheci meu amigo Xavier, na época seminarista capuchinho.

Frei Cirilo me lembra a história do flautista de Hamelin. Ele não tocava flauta nem espantava ratos da cidade, mas andava sempre rodeado por dezenas de crianças, que tinham verdadeira adoração por ele. O carinho das crianças apenas evidenciava o reconhecimento da comunidade católica a um frei que renovou e deu novo ânimo e vigor à igreja na cidade.

Deixou Penápolis em janeiro de 1981 para trabalhar em Votuporanga, entristecendo toda a cidade. Mas a tristeza seria ainda maior pouco mais de um mês depois, quando faleceu num trágico acidente de automóvel causando grande comoção em todos os penapolenses, católicos ou não.

(Publicado originalmente no Facebook em 18/12/11)

Casa da Amizade

Estudei dois anos na Casa da Amizade. Fiz ali a 7ª e a 8ª séries em 1977 e 1978.

Era uma escola diferente. Pobre, com clientela também pobre, mas o prédio estava no centro de um enorme terreno.

Na frente um grande jardim, onde hoje está localizada a quadra. Era o local preferido para nossas brincadeiras de esconde-esconde ou salva, antes das aulas de Educação Física, que aconteciam à noite. Ficava tudo escuro e, assim, era mais difícil ser encontrado ou pego.

Não tínhamos quadra, apenas uma pequena área cimentada onde aconteciam as aulas de Educação Física. Mas foi ali, nessa precariedade, que tomei gosto pela atividade física. Até então tinha verdadeiro horror e só não reprovava por faltas porque era ótimo alunos nas demais matérias.

Foi o professor Jesus, jogador do CAP, quem despertou o interesse e me incentivou a participar das aulas. Porque foi sempre muito respeitoso, entendia e aceitava as potencialidades e as limitações de cada um e, ao invés de cobrar resultados, se dedicava a ensinar os fundamentos dos esportes. Foi, sem dúvida, meu melhor professor de Educação Física.

Recentemente me disseram que está lecionando numa Universidade nos Estados Unidos. Também me lembro do professor Demeure, de Português, que exigia conjugação dos verbos em todos os tempos e modos e aplicava testes surpresa de ortografia. 

Mas não era só de gramática que se ocupava. Demeure incentivava bastante a leitura e ofertava os livros para os alunos. Na oitava série li 14 livros que ele me emprestou ao longo do ano, dentre eles Senhora, A Mão e a Luva, dom Casmurro, Quincas Borba, O Menino do Dedo Verde e A Ilha Perdida.

Nessa época, cada aluno levava todos os dias um legume para a sopa. E acontecia o milagre da partilha: uma batata de um, uma cebola de outro, uma mandioquinha de um terceiro... e todos saciavam a fome na hora do recreio. Tinha um sabor especial.

As aulas de Artes Industriais também era legais. O professor era o Adail Valin, que tinha uma loja de discos na antiga rodoviária de Penápolis. Fazíamos trabalhos manuais com madeira e couro dentre outros materiais. Depois de pronto, o trabalho era decorado com desenhos feitos com um pirógrafo. Fiz uma carteira de couro, um estojo de madeira, uma bandeija de azulejos...

A maior surpresa que tive na Casa da Amizade foi quando a diretora, a Tereza japonesa, mandou me chamar em casa, na parte da manhã. Fiquei preocupado, pensando tratar-se de alguma reprimenda ou algum problema e fui imediatamente para a escola, do jeito que estava, de short e chinelos.

Quando entrei na escola, o pátio interno estava todo arrumado e um cerimonial em andamento. Fui chamado à frente e recebi, como prêmio por ser um aluno destaque, uma caderneta de poupança no valor de 500 cruzeiros, oferecida pela Caixa Econômica Estadual. Fiquei radiante de alegria.

Retornei à Casa da Amizade em 1982, já como estudante de Pedagogia, para cumprir meus estágios de administração escolar. A equipe gestora e docente permanecia a mesma e todos se mostraram felizes por ter um ex-aluno estagiando na escola.

(Publicado originalmente no Facebook em 14/12/11)

Trabalhos e empregos

Atrás desse balcão de madeira, onde meus pais aparecem na foto, tive o meu primeiro trabalho na cidade. Trabalho e não emprego, como bem diferenciava meu pai.

Era a mercearia Nossa Senhora Aparecida, bem na esquina da Rua Maranhão com a Rua Goiás, na Vila América, ou simplesmente a "venda do tio Annibal", como os primos se referiam. O Camilo também trabalhou ali, mas na época dessa foto já estava morando em Americana.

Minha rotina começava às sete e meia da manhã, quando meu pai me acordava para abrir a venda. Varria o chão, lavava todos os copos, organizava as prateleiras repondo mercadorias e aguardava a freguesia. Cuidava das notas fiscais de entrada e saída e controlava as contas bancárias do meu pai, verificando os cheques emitidos e depositando os valores necessários nos bancos Banespa e Bandeirantes, que ficava ali na rua São Francisco.

Meu pai cuidava das compras, atendendo aos viajantes. Quando chegava alguém, eu batia forte na parede que fazia divisa com a casa e ele logo vinha atender. Foi assim até que a parede começou a descascar de tanta batida. A saída foi colocar uma campainha que tocava dentro de casa avisando que se fazia necessária a presença de meu pai na mercearia.

Sobre esses balcões eu estudava e fazia as tarefas de casa. Por volta das duas horas da tarde chamava meu pai, vestia o uniforme e ia para a escola, a Casa da Amizade.

Mesmo ajudando na mercearia, tive várias outras ocupações nesse tempo. Com uma cesta saí vendendo coxinhas na rua, até o dia em que um moço de bicicleta me parou na avenida Adolfo Hecht, próximo ao supermercado Shinkai, comeu vários salgados e fugiu sem pagar. Tentei correr atrás, segurar a bicicleta, mas não consegui. E desisti do negócio.

Também fui sorveteiro. Todas as manhãs ía até a sorveteria Skineve e pegava um carrinho cheio de picolés e percorria as ruas da Vila América a Vila Fátima. Passava bem devagar na frente das casas onde sabia que havia crianças e ficava assoprando um apito até que alguém saísse para comprar o sorvete. No final da tarde devolvia o carrinho, pagava pelos sorvetes vendidos e recebia minha comissão.

Todo o dinheirinho que entrava era entregue para minha mãe, que se encarregava de atender nossas necessidades de roupas e calçados. Também ajudei minha mãe num outro trabalho, que consistia em limpar com benzina cintas elásticas de uma fábrica localizada na vila Tóquio. Buscava de manhã e devolvia limpas na manhã seguinte. Servicinho chato e cansativo, mas rendia mais que os sorvetes, com a vantagem que o serviço era feito dentro de casa.

Por um tempo também trabalhei nos finais de semana na lanchonete Biroska, dos meus cunhados Jesus e Moisés, na esquina do edifício Adília. Aos sábados e domingos servia lanches e bebidas, nas mesas e no balcão, das sete da noite até quatro ou cinco da madrugada. Lá pelas duas da madruga o Jesus me preparava um misto quente, que eu saboreava junto com um guaraná.

Só não fui engraxate porque não tinha uma caixa apropriada, mas engraxava e dava lustro nos sapatos de todos em casa.

Trabalho foi uma constante na minha vida desde a infância e a adolescência, ainda que de forma precária. Emprego mesmo, com carteira assinada, só fui ter aos 17 anos, na Jojoca, a loja de autopeças de meu tio José Martins. Ali atendia a clientela, cuidava da limpeza e organização do estoque e, de bicicleta, cruzava a cidade fazendo cobranças.

A faculdade é que me abriu novas oportunidades profissionais. Mas isso já é um outro causo.

(Publicado originalmente no Facebook em 14/12/11)

Sobrinhos

Mudar para a cidade representou para todos nós uma mudança radical nos hábitos e no estilo de vida. Mas teve também muitos aspectos agradáveis.

Um deles foi a chegada da primeira sobrinha, a Janise, em 20 de novembro de 1976. Aos 11 anos virei tio e deixei de invejar meu primo Luis Costa que, embora mais novo que eu, já era tio do Chiquinho Costa.

Morando na cidade podíamos ver a bebezinha todos os dias, o que não seria possível se ainda estivéssemos no sítio.

Os domingos sempre eram especiais e não apenas pela macarronada preparada pela minha mãe: é que minha irmã Maria vinha almoçar em casa, junto com meu primo/cunhado Jesus e a Janise. Assim tínhamos a oportunidade de passar o dia brincando com a mais nova integrante da família. Quando ela cresceu um pouquinho, eu ía todos os dias buscá-la e a trazia para nossa casa empurrando seu imponente carrinho vermelho.

Depois vieram os outros sobrinhos: o Anibal Martins Neto, que só víamos de vez em quando, pois morava em Americana, mas era muito sapeca; a Rosângela, geniosa e reclamona como a sua filha Larissa; o Denisar; o Luiz Henrique, garoto esperto e muito inteligente que eu chamava de "baianinho", ao que ele me devolvia "bimbinho"; o Alex... e mais tarde o Vinicius, a Ana Paula, a Roseane e o Samuel.

Rosângela e Henrique foram os sobrinhos que mais convivi na infância, pois seus pais Ana e Moisés construíram uma casa nos fundos da nossa, na Vila América. Depois, quando seus pais já moravam em Nova Odessa, passaram uma temporada conosco em Penápolis, numa casa em que moramos na avenida Rui Barbosa, vila Aparecida.

Essa convivência mais próxima criou afinidades. Amo todos os meus sobrinhos, sem exceção, mas esses dois serão sempre muito especiais, assim como irmãos mais novos que eu, sendo o caçula, não tive. Espero que os demais não fiquem enciumados.

Hoje é muito gratificante ver cada um desses sobrinhos constituindo suas famílias, se realizando como pais e mães e nos ajudando a reviver o passado através de seus filhos: Isabela, Angélica, Larissa, Felipe, Alice.

(Publicado originalmente no Facebook em 12/12/11)

Médico altruísta e político

Palacete dos Sabino
A quitanda da tia Rosa era a última parada antes de irmos para o sítio. Uma quitandinha pequena, ao lado de sua casa, na Rua Brasil, vila Martins. Mas tinha uma vitrine de doces que me deixava com água na boca. Ficava ali na frente, boquiaberto, admirando aquelas guloseimas.

Meu pai até que ofereceu, mas ecoava forte a recomendação de minha mãe de nunca aceitar nada na primeira vez que nos oferecessem. Era falta de educação. Criança educada recusava e só aceitava se insistissem em oferecer algo para comer. Como meu pai ofereceu apenas uma vez, fiquei sem o doce.

O resultado foi uma baita febre no meio da noite que obrigou meus pais a saírem do sítio de madrugada para me levarem ao médico. Pelo que consigo me lembrar, foi minha única visita ao médico em toda a infância.

Dr. Mário Sabino nos atendeu de pijama, na escadaria da mansão da família, exatamente nessa porta em que apareço na foto. Magro, alto, olhar sério... Me examinou e perguntou aos meus pais: "esse menino passou vontade de alguma coisa?" Assim, rápido e sem recurso a nenhum exame sofisticado, veio o diagnóstico. A febre era resultado de um desejo não atendido. E no lugar dos remédios, os doces da quitanda de minha tia Rosa.

Dr. Mário Sabino não mereceu a confiança de meus pais apenas no exercício de sua profissão. Sua disponibilidade e desprendimento conquistou também o voto dos dois, na sua eleição para vereador em 1972.

Com o tempo aprendi que certo mesmo era meu irmão Camilo. Ele também seguia à risca a recomendação de minha mãe, mas com uma sutil diferença. Quando lhe ofereciam algo, estendia a mão, aceitando de imediato, enquanto dizia: "não precisa, não!"

(Publicado originalmente no Facebook em 10/12/11)

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Escritor de cartas

Quando assisti Central do Brasil de cara me identifiquei com a Dora, personagem da Fernanda Montenegro no filme. É que na minha adolescência também cumpri a tarefa de escrever cartas para pessoas que não dominavam a técnica da escrita.

Uma dessas pessoas foi o Lindolfo, que todos conheciam por Baiano, devido à sua origem. Era cozinheiro dos frades no Santuário São Francisco de Assis, em Penápolis. Aos domingos, após a missa das 8h30, aparecia na porta que dava acesso ao convento e me chamava.

Na cozinha, enquanto descascava batatas e cebolas e cuidava das panelas, ia ditando as cartas que enviaria a familiares e à namorada que deixara na Bahia. Para cativar o "escrevinhador" sempre servia uma taça de vinho e porções de queijo e azeitona. Era uma tarefa meio maçante, mas me dava prazer por ver a gratidão estampada no rosto do Baiano quando lia para ele a carta.

Lindolfo não foi o único. Minha avó materna, Francisca, foi quem mais se valeu dos meus dotes de escritor de cartas. Ela passava temporadas de dois ou três meses na casa de cada um dos filhos e depois retornava a Penápolis, onde se revezava nas casas das três filhas: minha mãe, tia Nena e tia Pina.

Quando vinha para casa sempre me pedia para escrever uma ou várias cartas. No começo eu me enrolava todo, pois tentava dar coerência e coesão ao texto, corrigindo ao escrever os erros que ela ditava. Só que no final ela sempre pedia para reler e não aceitava, pedia que reescrevesse tal como ditara.

Com o tempo fui percebendo que suas cartas tinham sempre a mesma estrutura, o mesmo começo, o mesmo meio, o mesmo fim. Fui decorando e, quando ela pedia para reler, apenas recitava o que ela queria ouvir, embora tivesse escrito tudo de forma diferente. Acho que ela nunca soube disso, tanto que continuou se valendo dos meus "serviços" por muito tempo. Mas se soubesse teria, com certeza me chamado a atenção.

Tinha personalidade forte, não deixava nunca de dizer o que pensava, mesmo sabendo que podia magoar alguém. Mas também tinha um carinho muito grande pelos filhos e netos. A família era a sua vida e sempre foi assim, como podemos comprovar nessa foto.

Ficou radiante de alegria quando nasceu meu primogênito, Francisco Martins. Achava que o nome do bisneto era uma homenagem a ela. Na verdade a escolha do nome teve outra motivação, mas nunca contestamos.

A última imagem que tenho dela foi do dia 4 de março de 1997, após o enterro de meu cunhado Jesus. Sentada numa cadeira, na varanda da frente da casa da minha mãe, em Nova Odessa, ela foi abençoando cada um dos filhos e netos que, em fila, se despediam para retornar às suas casas. Algo me dizia que era sua última despedida. E foi mesmo. Dois meses depois, aos 92 anos de idade, ela faleceu em Penápolis.

(Publicado originalmente no Facebook em 29/11/11)

Da roça para a cidade

Minha primeira foto 3x4. Tirada no Foto Luís, claro. Foi feita para ilustrar minha primeira Identidade de Beneficiário do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social), em 1976, quando nos mudamos para a cidade.

Meu pai sofria bastante nessa época com os bicos de papagaio que "pousaram" em sua coluna, já não conseguia trabalhar na roça como fizera a vida toda. 

A irmã mais velha, Maria, tinha se casado no ano anterior. Joaquim, o irmão mais velho desistiu de esperar pelas fartas colheitas dos anos seguintes que nunca chegavam e foi tentar a sorte em Americana, em 1974. Eu e o Camilo, os filhos menores, estávamos estudando no Colégio interno em Araçatuba. Só a irmã do meio, a Ana, continuava em casa, ajudando nos serviços da roça.

Em 1975 meu pai tentou a última cartada para manter o pequeno sítio, sonho de uma vida inteira: convidou uma família amiga para trabalhar como meeiros. Eles moravam no sítio, na casa de madeira erguida sobre pilastras, cuidavam da roça e, ao final da colheita, dividiam a produção em duas partes iguais. Só não contava com a forte geada que arrasou o cafezal e acabou com as esperanças.

Não restou outra saída a não ser vender o sítio e engrossar as estatísticas do êxodo rural brasileiro. Sem capital nem crédito para incrementar a agricultura familiar de subsistência, não tinha como comprar implementos agrícolas nem como pagar empregados. E assim partimos para a cidade, em fevereiro de 1976.

Com o dinheiro da venda do sítio meu pai comprou na vila América uma casa e uma mercearia que pertencia ao Romeu Ambrósio. As mãos calejadas de puxar o cabo da enxada ao longo de décadas agora tentavam, com dificuldade, adaptar-se à caneta, à calculadora, às anotações nas cadernetas dos fregueses e no livro de fiado. A sábia paciência de agricultor que espera a semente brotar e crescer, tentando suportar as queixas, exigências, costumes e impertinências de muitos clientes, especialmente dos que vinham à mercearia beber cachaça.

E nós, acostumados à liberdade da roça, tentando nos conformar ao confinamento dos muros do quintal. Nem pensar em escapar para brincar ou jogar bola na rua. Minha mãe não permitia. Isso não era coisa para criança educada e de boa família como nós.

Lembro que uma das poucas brincadeiras na rua foi pegar a bicicleta velha de meu irmão Camilo (que já tinha sido do Joaquim e depois seria minha) e sair pedalando desorientado pela rua Goiás e depois descer pela rua Amazonas, pois não sabia brecar aquela geringonça. E o Camilo, bravo, correndo atrás de mim até me alcançar em frente ao Supermercado Azul. Foi a primeira vez que andei de bicicleta. E não caí!

De manhã ajudava meu pai na mercearia e à tarde ía para a escola. Na verdade minha maior ajuda era consumir os doces. Hummm... suspiro, maria mole, teta de nega, pingo de leite, paçoca, pé de moleque, triângulo de bananada e bala Sete Belo.

Naquele ano estudei na escola Marcos Trench. Dentre os professores me lembro da dona Emilia Aniceto Rossi, dona Ledna, dona Edna e da professora de música, se não me engano dona Leda. Todo mês ela pedia a cada aluno que escolhesse uma música e cantasse para a classe. Valia para nota.

Uma vez cantei a música Banda da Ilusão, do Ronnie Von. A professora gostou e me convenceu a representar a escola no festival estudantil que aconteceria na final do primeiro concurso da Rainha dos Estudantes. Incentivado pela prima Terezinha Costa, que estudava na mesma turma, me enchi de coragem e topei o desafio.

No dia, o ginásio de esportes lotado, um frio danado e eu vestido com uma velha japona azul, subi ao palco para cantar a Banda da Ilusão. Se fosse hoje, acho que teria morrido de vergonha. Mas na inocência de meus 11 anos acho que nem consegui distinguir as vaias dos poucos aplausos.

(Publicado originalmente no Facebook em 27/11/11)

No quarto andar

A rotina começava bem cedo. Levantar, arrumar a cama, cuidar da higiene pessoal, vestir-se rapidamente... Se não me falha a memória, éramos quase 100 crianças no dormitório dos menores.

Quando todos estavam prontos, saíamos em fila para a sala de estudos, que ficava no mesmo pavimento, o terceiro andar. Ali terminávamos alguma lição do dia anterior e separávamos o material para as aulas do dia. Depois de deixar o material na sala de aula, nos dirigíamos ao enorme refeitório para o café da manhã.

No refeitório cada um tinha seu lugar fixo na mesa e os integrantes de cada mesa se alternavam, ao longo das semanas, na limpeza e organização do espaço após as refeições. Numa mesa era servido chá, na outra leite. No dia seguinte isso se invertia. Eu preferia o chá, pois não suportava a nata do leite. Então, escondido, passava a caneca a algum colega da mesa ao lado para tomar o chá.

Nas aulas tínhamos a companhia dos alunos externos. Serginho de Português (sempre mal humorado), Delarim de Ciências, Ademir de Geografia. Só me lembro desses professores. O padre Luís Leal também lecionava, mas acho que era ensino religioso. Nordestino, sempre alegre, brincava com o próprio nome cantando "Luís, respeita os oito baixos do teu pai".

O diretor era o padre José Wincler, um alemão de olhos azuis. Como todo diretor, era temido pelos alunos, apesar de sua simpatia. Entrei em sua sala uma vez, encaminhado por um professor. Estava com febre e uma infecção de garganta e chorava, não sei se por estar doente ou com medo.

Ele me acolheu com ternura e me encaminhou à enfermaria onde fiquei por uma semana. Passava o dia todo sozinho, só recebia a visita do "enfermeiro" quando vinha me trazer as refeições ou os remédios. Mas tinha uma vantagem: era o único local em que o banho era quente.

Após as aulas diárias deixávamos o material na sala de estudos seguíamos para o almoço. Arroz, feijão, carne, algum legume e salada de repolho. Essa não faltava nunca. As únicas refeições diferentes aconteciam no jantar da quinta-feira, dia de passeio, e nos domingos. Quinta-feira tinha ovo cozido e polenta acompanhando o arroz com feijão. E no domingo nossa janta era um lanche de pão com mortadela e refrigerante. Um luxo!

Mês sim mês não cada um tinha uma tarefa a ser cumprida após o almoço, para ajudar na manutenção da casa. Minha primeira tarefa foi varrer os oito lances da escada da direita, do térreo ao quarto andar. Depois veio o corredor do terceiro andar, quase cem metros de extensão. Também fiquei encarregado de fazer a limpeza do hall do quarto andar, onde se localizavam os aposentos dos padres. Nenhum dos alunos tinha acesso aos quartos e eu só conheci o hall nesse período em que fazia a limpeza. Era proibido subir ao quarto andar.

Das tarefas a que mais gostei foi cuidar da sala de TV. Como só assistíamos nas quintas-feiras antes do jantar e nos finais de semana, a limpeza só era feita nas sextas e segundas-feiras. No resto da semana, folga.

Cumpridas as tarefas vinha o estudo. Na enorme sala cada um tinha sua carteira, daquelas que abre uma tampa e o material fica guardado dentro. Chegando à sala cada um abria a tampa e retirava todo o material necessário. Depois de fechada a tampa era proibido abri-la novamente. Padre Luís ficava num tablado, em posição mais alta, observando a todos e cuidando para que esse momento fosse realmente de estudo.

Quem terminava as lições do dia podia, com permissão do padre, dirigir-se à biblioteca para emprestar um livro de leitura. Meu irmão Camilo é quem cuidava da biblioteca. Foi ali que li Ali Babá e os Quarenta Ladrões, O Conde de Monte Cristo e O Último dos Moicanos.

Lá pelas quatro da tarde tínhamos um tempo para recreação. A maioria preferia futebol. Mas minha principal diversão era a leitura de gibis, coisa rara e muito disputada.

Banho gelado em três minutos contados no relógio e marcados com palmas do Delarim, mais um pouco de estudo até a hora do jantar e mais estudo até as dez da noite. Depois disso a oração da noite e o merecido sono.

Tudo isso passou à minha frente, como um filme, a cada passo, cada parede tocada e cada ambiente visitado quando retornei ao Colégio em agosto de 2010 para ministrar um curso do Biosaúde. E o melhor de tudo: como os padres se mudaram do colégio para uma nova casa construída ao lado do campo de futebol, finalmente pude conhecer e dormir (com a Marilda Martins) nos aposentos do quarto andar.

(Publicado originalmente no Facebook em 24/11/11)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Caixeiro viajante

No sítio sempre aparecia algum caixeiro viajante. Ofereciam uma diversidade de produtos e/ou serviços. Certa vez apareceu um senhor já bem idoso se oferecendo para, com sua oração, expulsar as cobras de nossa propriedade.

Pediu antes que meu pai avisasse meus irmãos, que estavam na roça, para que não se assustassem com a "procissão" de cobras que abandonariam nossas terras. Por via das dúvidas, meu pai aceitou. Mas ninguém viu nenhuma cobra fugindo.

Essa pessoa também disse que tinha visões do futuro e que me via bem velhinho, de bengala, cuidando do meu pai já centenário. Nem meu pai chegou ao centenário nem eu fiquei velhinho, ainda.

Mas teve um caixeiro viajante que era diferente. Ele não vendia nenhum produto nem serviço. Oferecia esperança. Seu nome: José Motta, ou simplesmente padre Motta. Apareceu ali no sítio recrutando crianças e adolescentes para estudar no colégio dos padres salesianos em Araçatuba.

Para nós que estávamos a 10 quilômetros da cidade e da escola "ginasial", sem qualquer meio de transporte diário, ir para o colégio interno era a esperança de continuar os estudos. Padre Motta conversou com meus pais propondo levar meu irmão Camilo.

Minha mãe gostou da ideia, pois via ali a possibilidade de realização de seu sonho de ter um filho padre. Meu pai ponderou as dificuldades de custear os estudos de um filho num colégio interno. Mas padre Motta fez um "preço" camarada e o Camilo foi para o Colégio Salesiano Dom Luis Lasagna, em Araçatuba, no ano de 1974.

No final desse ano, padre Motta voltou ao sítio, dessa vez com a proposta de me levar também, pois eu já estava terminando a quarta série. Meu pai mais uma vez lembrou das dificuldades financeiras. Se manter um já não era fácil, imagine dois filhos no colégio interno. Padre Motta não se fez de rogado e anunciou a "promoção": como o Camilo tinha se revelado um aluno bom e dedicado e ele esperava o mesmo de mim, fazia os dois pelo preço de um.

E assim ficou combinado que eu iria participar de um cursinho de férias, de 5 a 20 de janeiro, para conhecer a rotina do colégio e ver se dava pra encarar. Acabei não indo no dia 5, pois meu avô Conrado estava enfermo e faleceu no dia 9 de janeiro. Assim meu cursinho de férias durou apenas uma semana e mesmo assim fui "aprovado".

Foi a primeira vez que fiquei longe de casa, dos pais, dos irmãos. Como demoraram aqueles dias. Alguns meninos, nesses dias, choravam muito de saudade da família.

Fiquei interno no colégio dos padres salesianos durante todo o ano de 1975. Tinha outros penapolenses lá, além de mim e o Camilo. Nesta foto aparecem o Mauro Gabriel (hoje delegado de polícia) e seu primo Mauro Cheibe. Mas também estava lá o Antonio Frontoura, que hoje mora na vila São Joaquim e que carinhosamente chamávamos de "Risadinha", pois tinha sempre um sorriso estampado no rosto.

Foi um ano difícil, a saudade de casa, a disciplina rígida, muitas privações, o convívio com dezenas de crianças que tinham as mesmas carências afetivas... Mas esse ano marcou profundamente minha vida e ajudou a moldar minha personalidade.

Depois disso nunca mais vi o padre Motta, mas sei que continuou sua missão de recrutador de aspirantes à vida religiosa salesiana até o final de seus dias, em junho de 1997.

(Publicado originalmente no Facebook em 22/11/11)

Salto do Avanhandava

O clima era de ansiosa desconfiança. Afinal, que novidade era essa de reunir os pais dos alunos na escola? Isso nunca tinha acontecido antes. Chega, finalmente, a professora. Era a Bete Oberg.

Mas a reunião foi tranquila, nada de cobranças nem de reclamações dos alunos. O que a professora queria era propôr um passeio ou, como se diz hoje, uma "saída pedagógica". E com direito à participação das famílias para ajudar a levar e acompanhar as crianças. O local escolhido: Salto do Avanhandava.

A euforia tomou conta de todos. O passeio se tornou o assunto preferido até que chegou o grande dia. Quem tinha carro deu carona para quem não tinha e, assim, todos os alunos foram para lá.

A paisagem que encontramos no Salto era deslumbrante. A enorme cachoeira, a correnteza das águas, a ponte pênsil que conduzia até a ilha, onde estava localizado o restaurante. Aí que estava o problema, a ponte pênsil. Dava frio na barriga só de olhar. Imagine, então, atravessar aquela estreita ponte sustentada por cabos de aço que balançava na medida em que as pessoas avançavam rumo à ilha.

Foi minha mãe que tomou coragem e revelou o medo de atravessar. "Nessa ponte eu não passo, fico aqui deste lado mesmo", disse ela taxativa. E eu, solidário no medo, acrescentei: "também fico aqui".

Foi assim que vi o Salto do Avanhandava pela primeira e única vez. E, graças ao medo, não pude registrar a sensação de atravessar a ponte pênsil e chegar até a pequena ilha. Alguns anos mais tarde, mais precisamente em dezembro de 1982, o Salto do Avanhandava, a ilha e a ponte pênsil desapareceram definitivamente sob as águas da represa da Usina Nova Avanhandava.

Restaram apenas as lembranças. Doces lembranças.

(Publicado originalmente no Facebook em 17/11/11)

sábado, 16 de abril de 2016

A mesma praça

A fonte luminosa mantém sua magia
A mesma praça, o mesmo banco…

Não, não é a música. Era a rotina de todo domingo à noite. Vínhamos do sítio para a cidade no velho Candango DKV de meu pai e ficávamos na casa do tio Alvino e da tia Cleonice, bem em frente à praça Carlos Sampaio Filho. 

Eu era ainda bem pequeno, tinha três ou quatro anos, e preferia ficar na casa dos tios vendo TV, ouvindo a conversa de meu pai com seu irmão ou mesmo brincando na pequena varanda da frente.
Mas o programa invariavelmente era outro. Minha mãe me levava para sentar ao seu lado no mesmo banco da praça, bem em frente à fonte luminosa, de onde eu tinha mais ou menos a visão dessa foto.

Ali sentada ela ficava “vigiando” o passeio de minhas irmãs Ana e Maria que, como todas as moças, ficavam circulando a fonte em sentido anti-horário. Os moços iam no sentido contrário. Nada de “guerra” ou oposição dos sexos. A caminhada em sentidos contrários tinha uma simples razão: facilitar a troca de olhares, a piscadela, a paquera. 

E as mães, sempre sentadas nos bancos, controlavam o tempo gasto pelas moças em cada volta, acreditando que nada aconteceria enquanto as filhas estivessem fora do alcance de seus olhos.

E eu ficava ali, de castigo, contando os minutos para acabar aquele entediante passeio. O único consolo era a fonte luminosa com sua bela sinfonia de cores proporcionada pelas luzes multicoloridas que se alternavam a cada jorro de água.

Quando me cansava encostava a cabeça no colo de minha mãe e dali ficava observando a mágica sincronia dos movimentos da água em tons azuis, amarelos, vermelhos. Encantador.

Os bancos foram trocados, mas a praça continua a mesma. E a fonte luminosa? Ah, essa continua encantadora. Aliás, continua não, voltou a ser, pois ficou muito tempo desativada e foi recuperada e remodelada com as obras de revitalização da praça promovida nos últimos anos. Uma conquista de meu amigo prefeito Joao Luis dos Santos junto ao governo federal.

Pena que não exista mais ao seu redor aquele alegre movimento dos jovens que, mesmo sem perceber, executavam uma descontraída coreografia e tornavam completo o espetáculo das águas e das cores, nessa orquestra regida pela pulsação da vida. Retornar à praça é sempre especial. Sentar-se na fonte e ainda tendo a Marilda ao meu lado, é ainda melhor.

(Publicado originalmente no Facebook em 15/11/11)

Imigrantes

Família Martins. O começo.
Além do nome, Joaquim Martins, pouco sei do meu avô paterno. Meu pai pouco falava de seus antepassados, talvez porque também não soubesse muita coisa. 

Imigrante português, da província de Trás-os-Montes, meu avô chegou ao Brasil no início do século passado, junto com minha avó Antonia. Meu pai contava que deixaram uma filha em Portugal, condição imposta pelo meu bisavô para permitir a vinda do casal ao Brasil. 

Como todo imigrante, deixavam a terra natal e vinham para cá para fazer fortuna, sempre com a esperança de retornar. Como a grande maioria dos imigrantes, nunca retornaram. Aqui constituíram a parte brasileira da família, com as dificuldades bastante características da época. 
Passaram por Tabapuã, onde nasceu meu pai, e depois se fixaram em Penápolis. 

Meu pai era ainda bem jovem quando faleceu meu avô e sendo o mais velho dos filhos homens, compartilhou com minha avó a tarefa de cuidar dos irmãos menores. Eram, ao todo, oito irmãos: Ana, Rosalina, Isabel, Maria, Lucinda, Tereza, Annibal, Alvino e José. 

Minha avó tive o privilégio de conhecer. Portuguesa austera, de rígidos costumes, impunha respeito a todos com quem convivia. Sempre que chegávamos em sua casa, pedíamos a sua benção, beijando-lhe a mão. No primeiro dia do ano não admitia que a primeira visita fosse de uma mulher. Era sinal de mau agouro. Se acontecia, esbravejava e punha para correr a inoportuna visita. Mas se fosse homem, servia um copo de vinho, feliz pela boa sorte que o novo ano traria. 

Viveu mais de 90 anos, sempre com muita lucidez e saúde. Só viu-se impedida de sair à rua para cuidar das compras nos últimos anos, quando a visão já não lhe ajudava muito. Foi, sem dúvida, uma guerreira.

(Publicado originalmente no Facebook em 10/11/11)

terça-feira, 12 de abril de 2016

Festa e alegria

A casa da tia Nena era parada obrigatória quando vínhamos para a cidade, na época em que morávamos no bairro Lagoa da Mata. Tanto nessa casa da Rua Pará quanto na outra, na rua Sergipe. 

Dessa casa a única lembrança que tenho foi da despedida de solteiro do Chico e da Conceição, pais do Chiquinho Costa. O pessoal da Congregação Mariana se juntou lá e fez uma grande algazarra, com direito a vários presentes surpresa. 

Mas só me lembro de um desses presentes: um penico, dentro do qual colocaram um pedaço de linguiça e dois ovos. Imaginem a omelete que virou depois de tanto chacoalharem a caixa na tentativa de descobrir o que era! 

Da outra casa guardo mais lembranças, alegres e tristes. Foi ali que faleceu meu avô Conrado e onde aconteceu a festa de casamento da minha irmã Maria com o Jesus. 

Também ali brinquei muito com o Luis Costa e tive o cabelo cortado pela minha tia Nena com uma velha maquininha que mais arrancava que cortava. Como doía! Por um bom tempo ficava apavorado só de ouvir falar em cortar o cabelo. A cisma só passou quando meu pai passou a me levar no salão do seu Alípio, que ficava na rua Altino Vaz de Melo, em frente ao antigo Supermercado Sakumoto (que nem era chamado de supermercado naquela época). 

Na maioria das vezes eu ficava na casa da tia Nena enquanto meus pais faziam compras ou resolviam o que tinha que ser resolvido. Na volta me pegavam. Ficava sob os cuidados de minha prima Fátima, que dedicava atenção especial, contava histórias e me oferecia um delicioso lanche da tarde, com pão de "pandeiro" e guaraná. 

Sem contar no abiu, uma fruta que só vi e experimentei naquele quintal. A casa da tia Nena e do tio Zé Costa para mim sempre foi sinônimo de festa e de alegria. Como esta retratada na foto, reunindo as famílias das três irmãs: minha mãe Tereza e as tias Nena e Pina.

(Publicado originalmente no Facebook em 06/11/11)

Viagens e retratos

Meu pai, eu, o primo Zezinho e o tio Salvador
Viagem na minha infância era coisa rara, assim como os "retratos". Esse é um dos poucos que tenho.

De vez em quando passava no sítio um fotógrafo, que conhecíamos por Dedé, e tirava fotos da família toda. Mas não eram fotografias reveladas em papel, e sim em "binóculos". Aliás até hoje não entendo porque se chamavam binóculos, já que tinham apenas uma pequena lente pela qual, tapando um dos olhos, conseguíamos apreciar a foto. O nome correto devia ser monóculo.

Mas, como dizia no início, viagem era coisa rara, reservada para ocasiões especiais. Como essa aqui retratada, o batizado de meu primo Carlos Alberto Gallo. Meus pais foram os padrinhos e eu os acompanhei na viagem até São José do Rio Preto. Não me recordo da data precisa, mas imagino que foi entre 1974 e 1975, pois a "linda" camisa que estou usando é a mesma da minha primeira comunhão. 

O Carlinhos é filho do Zezinho, um primo que sempre esteve muito presente na nossa vida, nos momentos alegres e nos tristes. Até hoje é assim. Pouco contato tive com seu pai, o meu tio Salvador Gallo, irmão mais velho de minha mãe. Esse dia é o primeiro que me lembro de tê-lo visto. 


Da igreja, após o batizado, fomos para o almoço na casa do Zezinho. Programa simples, mas muito especial, pois só ocasiões assim nos permitiam sair do sítio e ver coisas diferentes. 


Porém essa não foi a única nem a mais distante viagem da minha infância. Quando eu tinha cerca de 2 anos, fui a São Paulo com meus pais. Viajamos de trem. E me lembro que passava um homem vendendo jornais e revistas e anunciando a morte do Castelo. 


Na minha inocente desinformação, ficava imaginado um castelo de conto de fadas sendo destruído. Só alguns anos depois fui saber que o jornaleiro anunciava a morte do general Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura militar, morto em acidente aéreo em 1967. 

Quando chegamos a São Paulo fazia muito frio e acabei fazendo xixi na roupa, o que aumentou a sensação de frio. Meu pai saiu no meio da multidão procurando pelo meu tio Sebastião Gallo, que deveria estar nos esperando. Enquanto andava alguém o chamava insistentemente, mas ele apressou o passo e nem sequer olhava para trás, receoso de algum assalto. Era meu tio Sebastião que, finalmente, viera nos buscar com seu Gordini. 


Passamos alguns dias em São Paulo, visitando meus avós e tios. Na casa do tio Sebastião me impressionava a quantidade de brinquedos do meu primo Anderson. Tinha um aviãozinho movido a corda que girava, girava, parava, abria a portinha e nela aparecia uma aeromoça. Não pude nem sequer tocar no brinquedo, pois o Anderson não deixava. 


Também ficou guardado na minha memória a noite em que o tio nos levou à casa de minha avó, no Belenzinho. Conversando com meu pai, distraiu-se e passou sobre as enormes tartarugas que dividiam a avenida em duas pistas. Resultado: perdeu o escapamento do velho Gordini que, assim ficou ainda mais barulhento.


(Publ
icado originalmente no Facebook em 05/11/11)

Capela

A capela era o local de encontro de todos que moravam no bairro. O padre vinha rezar a missa uma vez por mês, às vezes vinha um ministro da Palavra fazer uma celebração. Mas não passava uma semana sem que o povo se reunisse para a reza do terço. Sinal de fé e devoção, mas também pretexto para o encontro, a partilha da caminhada. 
Para juntar o povo na capela bastava alguém tocar o sino. Logo todos acorriam para lá. 

Era também o espaço de lazer. O campo de bocha, o pátio para as brincadeiras da meninada. O coreto virava palanque quando tinha eleição. E de vez em quando, na gestão do saudoso prefeito Nagib Sabino, tinha projeção de filmes, cinema à luz do luar. 

Foi nessa capela que fiz minha primeira comunhão no dia 21 de setembro de 1974. Fui preparado em casa mesmo, pelas minhas irmãs Ana e Maria, pois naquele ano não tinha nenhum grupo de catequese na capela. Estudava as perguntas e respostas num velho catecismo pré-Vaticano II. 

No dia da festa da padroeira (até hoje não sei porque era comemorado em setembro), minha mãe conversou com o frei Marcelino Correr, o mesmo que me batizou e que mais tarde se tornaria dom frei Marcelino - bispo de Carolina/MA, e pediu a ele que me deixasse fazer a primeira comunhão. Ele me chamou ao confessionário, fez algumas perguntas, deu a absolvição e, assim, naquela manhã de domingo, me tornei participante do sacramento da Eucaristia. 

Após a missa, quase meio dia, com o sol a pino, sai a procissão em louvor a Nossa Senhora Aparecida. Não fui. Fiquei na capela esperando, radiante de alegria. 

Retornei à capela poucas vezes depois que nos mudamos do Córrego Grande: numa festa, acompanhando o saudoso frei Antonio Milani, nesse dia retratado na foto, quando levei meus pais e meus filhos para uma visita ao chão de minha infância e, mais recentemente, em 2008, acompanhando o prefeito Joaoluis Santos na reunião do Orçamento Participativo. 

Lembrar da religiosidade do povo caipira do sítio é lembrar também das festas juninas, a reza do terço com ladainha e tudo, a fogueira, os rojões, traques e buscapés... E o melhor de tudo: o delicioso chocolate quente que minha mãe preparava como ninguém, só com água, e que era servido ao final do terço. Inesquecível.

(Publicado originalmente no Facebook em 03/11/11)